quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Kwa heri 2010!

Fim de ano, novo chegando. Tempo de escolhas sobre o que queremos manter, o que queremos mudar, o que queremos mais, o que queremos menos, onde queremos ir, para onde não queremos voltar, quem queremos mais perto, quem queremos ver longe.
Tenho sim muitos desejos para 2011, sempre temos. Mas neste post vou comentar o ano que passou, uma avalanche.

Em 2010 tudo mudou, um fim de semana mudou minha vida. Surgiu uma oportunidade de fazer um trabalho em que acredito e me joguei. Fui pra longe, um oceano e um continente de distância. Tentei me manter perto, dividindo o lado de dentro.
Virei a página, o negro virou azul, o azul ficou transparente. Abri mão do que amo pra viver no calor de Magoma.
Este ano aprendi a irrigar e a reconhecer uma plantinha de melancia, este ano descobri que banho de caneca pode ser o maior barato, este ano tomei suco e chá com açúcar porque não dá pra dizer não, este ano fiquei sem queijo, vi meu corpo crescer (resolução para 2011: desfazer esta parte!) e parei de dançar. Aprendi kiswahili, esqueci português.
Este ano virei mama sem ter filhos, virei mzungu, recebi propostas de casamento de gente que não me conhece, vi o sol nascer correndo cedinho, vi o sol nascer do ônibus de filme, vi o sol nascer na praia. Fui beijada por uma girafa, fiz amigos norte-americanos que me ensinaram a falar banana-hamock, virei mzee (velho), virei kijana (jovem), me mostrei e me escondi.
Senti saudades, decidi ficar, fiquei, quis mudar, mudei.

2010 foi uma avalanche, mudou tudo que tinha para ser mudado e um pouco do que não era pra mudar. E eu, que sempre gostei de mudanças e sempre desejei viver longe na monotonia, vi minha vida virar de ponta-cabeça: faz sentido, o que torna as mudanças magníficas é justamente a falta de controle que temos sobre elas.

Vou começar o ano em Magoma de um jeito diferente. Vou comemorar duas vezes, no horário daqui e no horário do Brasil. Vou me imaginar na praia pulando ondinhas enquanto me molho com as mangueiras de irrigação. Vou chorar um pouquinho de saudades, vou passar a meia-noite sozinha (aqui ninguém comemora). Vou sonhar e me abrir pro ano que chega, pra que eu seja capaz de promover mais mudanças não só na minha vida, mas especialmente na vida dos 813 estudantes que sorriem para mim todos os dias.
Que venha 2011! Feliz Ano Novo!

365 novas oportunidades para sermos felizes. 365 páginas em branco para escrevermos nossa história. Desejo que vocês aproveitem cada uma delas! Bora nos jogar :)

Nairóbi


Tinha que ir à fronteira para renovar meu visto de permanência na Tanzânia. Já que tenho que sair do país, por que não aproveitar para conhecer um cantinho novo?

Foi assim que Nairóbi (Quênia) entrou na minha vida. Ouvi muita gente dizer que a cidade é horrorosa, a mais traumática do mundo. A curiosidade bateu e decidi tirar a prova.
De Korogwe a Nairóbi foram 11 horas de viagem. Cheguei 1h30 da manhã pensando "que hora bizarra para pisar em uma cidade tão perigosa". Mas foi fácil achar um táxi que me cobrou mais caro, mas me levou em segurança para meu refúgio de mochileira (eu sabia o valor da corrida porque perguntei quando reservei o hotel, mas de madrugada tudo que eu queria era chegar em segurança, não negociei preço).
Dormi em uma cabine, um pequeno bangalô de madeira no meio da vegetação. O segurança abriu a porta pra mim, a recepção já estava fechada. Fazia frio e eu, desacostumada depois de seis meses em Magoma, não levei meias e enrolei a camiseta em um pé, a canga no outro. Dormi bem.

O albergue de mochileiros foi uma escolha acertada. Conheci pessoas viajando pela África, viajando pelo mundo, viajando pelo Quênia. Falei português e espanhol, ouvi alemão.
No segundo dia minha cabine não estava disponível (eu havia feito a reserva para apenas uma noite) e migrei para uma barraca. Sim, UMA BARRACA!
Quem me conhece sabe o quanto amo acampar e pode imaginar minha felicidade. São barracas permanentes, com roupa de cama (!) fornecida pelo lodge.

Caminhei no centro de Nairóbi, subi em uma torre para olhar a cidade - que não se perde de vista e está circundada por savana - sentei num parque com um monte de gente esquisita, fiz amigos, curti a happy hour.
Visitei um berçário de elefantes onde bebês-elefantes encontrados machucados ou sozinhos na savana são cuidados até terem idade e condições para reintrodução na natureza. Vi um rinoceronte-negro. Visitei um centro de alimentação de girafas (e fui beijada por uma girafa!!!).

Nairóbi me rendeu amigos, me lembrou porque me defino como mochileira, me chacoalhou, me colocou em um prumo e me tirou de outro. Encheu-me de vontade de viajar pela África e me mostrou que dá pra fazer isso sendo uma mulher sozinha. Permitiu-me compartilhar a experiência na Tanzânia enquanto ouvia a experiência de quem está em outra viagem.
A volta de ônibus foi épica: sentada no chão do ônibus sobre uma almofada, a música (meio árabe, meio africana) no último volume, os personagens dentro do ônibus (de masais a missionários), a savana do lado de fora, o Kilimanjaro surgindo entre as nuvens, a velocidade leeenta e as paradas tumultuadas em que passageiros são deixados pra trás (e às vezes perseguem o ônibus em motocicletas para continuar viagem). Foram 20 horas para chegar a Magoma, em tempo para meu Natal no sertão.

Nairóbi: seja cuidadoso, lembre-se das precauções que tomaria andando na Praça da Sé ou no Largo 13 de Maio e divirta-se! Eu recomendo :)

domingo, 19 de dezembro de 2010

Cinema em Magoma














Tínhamos encerramento do ano escolar, fechamento da temporada e despedida da Kristina, tudo acontecendo ao mesmo tempo.
Aqui só existe um tipo de festa, todo mundo comendo pilau (arroz com carne da cabra e especiarias) e bebendo refrigerante (normalmente com as mãos em grandes pratos comunitários). Casamento? Pilau e refrigerante. Feriado? Pilau e refrigerante. Encerramento do ano escolar? Bom, normalmente nada, mas quando mencionamos nosso interesse em fazer alguma coisa surgiu a expectativa de pilau e refrigerante.
Desde que cheguei a Magoma penso em Cinema Paradiso (filme italiano, Giuseppe Tornatore) por aqui, sempre considerando uma viagem da minha cabeça sonhadora. Mas nos últimos meses fizemos tantas coisas que só estavam vivas em nossas cabeças sonhadoras, por que não mais esta?

Anunciamos durante toda a semana que todos em Magoma estavam convidados para uma sessão de cinema na escola. Contratamos nosso serviço preferido, o Tangazo Man, homem que anda pela vila à noite, bate uma panela e grita
"Tangazo! Tangazo! Tangazo!" (Notícia! Notícia! Notícia)
para então informar enterros, nascimentos, reuniões, serviços médicos e, em 3 de dezembro de 2010, cinema.

Não vou descrever aqui o desespero que foi preparar o vídeo, 25 minutos de fotos da escola, da vila, dos estudantes, animados com música brasileira e norte-americana. Claro que faltou luz durante toda a semana e tive que virar duas noites seguidas para conseguir terminar o projeto. Claro que o som ficou estranho no meio de tantas conversões e tivemos que sincronizar o DVD com um CD de música. Claro que não foi fácil alugar um projetor na Tanzânia, ainda que Mr. Thomas do Club JT (Korogwe) tenha sido extremamente atencioso.
O fato é que nada disso importa.
Tivemos 300 crianças sentadas num tapetão de lona e compramos sorvete para todas elas (gelinho de água, baobá, suco e açúcar - a guloseima oficial de Magoma, preparada por Mama Tuna e vendida por TSH50 – US$0,03). Marcamos as mãos de cada uma com canetão para controlar a entrega, uma unidade por criança.
Tivemos adultos também, sentados em cadeiras que pedimos emprestadas em toda a vila (igreja, escola, ONGs) ou em pé ao redor do tapete.

Assim que anoiteceu acendemos a iluminação, velas dentro dos baldes coloridos que as crianças trouxeram (são esses baldes que usamos para tomar banho, lavar roupas, armazenar comida). Marcamos o nome da criança no balde para devolvê-lo ao final da noite.

O vídeo começou e as crianças riam e gritavam cada vez que reconheciam alguém ou algum lugar na tela (todo o tempo, o vídeo era todo sobre Magoma). Anunciavam o nome da pessoa ou do lugar. Não desgrudavam os olhos da tela.
Meu momento preferido foi no final, quando durante o filme dos estudantes cantando de manhã na escola algumas crianças levantaram para acompanhar o filme cantando.
Ao final dos 25 minutos todos queriam mais e projetamos O Rei Leão.

Sempre ouço dos meus amigos que escrevo bem e consigo passar a emoção que vivo através do blog. Hoje acho que não mereço o elogio, acho que não sou capaz de transmitir o que sentimos na primeira sessão de cinema de Magoma.
As crianças gostaram de O Rei Leão. As crianças amaram Magoma.
3 de dezembro de 2010 foi o dia em que nossos pequenos atores superstars foram mais populares que Simba, Timão e Pumba.

Pb. Mr. Bodo sempre gargalha quando conversamos sobre o Tangazo Man e me pergunta quem é o Tangazo Man em São Paulo. Minha resposta é sempre a mesma, que o pobre Tangazo Man em São Paulo começaria anunciando um nascimento, mas demoraria tanto para caminhar toda a cidade que terminaria anunciando a morte do dito bebê, já idoso e após uma vida feliz.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Daniel

No geral os estudantes nos enchem de orgulho. São olhinhos curiosos e sorrisos automáticos cada vez que entramos na sala de aula. Quando não há aula, como em grande parte desta semana, avisamos aos alunos quando pretendemos trabalhar com suas classes e temos estudantes esperando pacientemente por nossas atividades, às vezes por algumas horas já que temos trabalhado com três ou quatro classes por dia para driblar a agenda maluca da escola.

Esta semana a 1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries foram à escola apenas por nossa causa :)
Em todo grupo existem estrelas. Temos as nossas aqui.

Daniel está sempre por perto. É o garoto que escala o coqueiro para pegar cocos para todos nós no fim de tarde. Mesmo quando não o selecionamos para uma determinada atividade (tentamos rotacionar os estudantes) ele está lá.

O garoto tem sempre tanta energia!
Ele não carrega a bomba de irrigação, ele corre com a bomba sobre a cabeça ladeira acima. Ele não puxa as mangueiras cheias de água, ele corre 20m puxando as mangueiras. Ele não vai desligar a bomba, ele salta de um monte de terra para outro até chegar ao rio.

Nos surpreendemos quando dividimos os times de irrigação com estudantes da 5ª e 6ª séries e ele não estava lá. Entendemos mais tarde, no mesmo dia, ao levar a 3ª série para uma atividade e encontrá-lo na sala de aula.

Daniel trabalha na plantação de arroz do irmão, cuida de um rebanho de cabras todas as tardes, vai à escola e encontra tempo para trabalhar na nossa plantação de melancias (e escalar o coqueiro para nos oferecer cocos).
Claro que o convidamos a participar de um dos times de irrigação. Claro que ele aceitou imediatamente (esta semana esteve irrigando não apenas com seu time, mas com todos os outros também. Na verdade ele está irrigando agora mesmo, enquanto escrevo este blog).

A surpresa maior veio ontem à noite. Eu tinha certeza que Daniel era um garoto grande de 13 anos. Ontem estávamos voltando da shamba depois de transplantar o ngogwe (berinjela africana), noite chegando.

Eu: "Daniel, una miaka mingapi?" (Daniel, quantos anos você tem?).
Daniel: "Kumi na saba" (17).
Kristina e eu: "No way, when were you born?" (Sem chance, quando você nasceu?).
Daniel: 1993.

Daniel não é um garoto grande de 13 anos. É um garoto pequeno de 17 anos. E isso mudou todas as minhas perspectivas.

Não sei em detalhes sua história ou porque ele ainda está na 3ª série. Tenho certeza que não teve a oportunidade de estudar por muitos anos e o admiro ainda mais por não ter vergonha de ir à escola em uma turma oito anos mais nova. Mais do que isso, não reclamou ao desenhar sua escola dos sonhos, atividade que propusemos à 3ª série.

Frequentemente vemos os garotos trabalhando na shamba e temos a sensação de estar rodeadas por gigantes. Quando voltamos à escola e os temos em uniformes percebemos que são apenas crianças, e crianças pequenas.

Kristina e eu tomamos café com Mzee Francis na varanda da máquina de farinha ontem à noite. Esta não foi uma semana fácil, tivemos problemas sérios na quarta e estamos exaustas. Mas sorrimos ao pensar que é para Daniel que estamos trabalhando tanto. Para um garoto como ele, que não teve oportunidades, mas as agarra quando elas surgem. Para que sua escola dos sonhos aconteça e para que seus sonhos voem muito além das paredes desbotadas da sala de aula.

sábado, 20 de novembro de 2010

Designer em Magoma

Não me sentia tão designer desde que cheguei a Magoma.

Tin fez aniversário duas semanas atrás e propus que celebrássemos com presentes criativos, feitos por cada um de nós. Meu presente para ela foi uma apresentação com fotos contando nossa estória em Magoma e a maneira nada linear como nos tornamos grandes amigas.
Tiro fotos todo o tempo e costumava mostrar as fotos para as crianças no visor da câmera, mas tive que repensar esta estratégia ao longo das últimas semanas.
Mostrar as fotos para as crianças causa um tumulto sem fim, interrompe a aula e o trabalho na shamba e é impossível quando o grupo tem dezenas de pares de olhos curiosos (situação freqüente em uma escola que tem 813 alunos divididos em uma classe para cada série).
Por isso criei algumas apresentações com fotos, para enviar aos patrocinadores do projeto no Brasil e nos EUA e para mostrar às crianças, professores, pais e parceiros tanzanianos.
Confesso que me enchi de orgulho quando Mwalimu chorou vendo a apresentação. E que me deliciei com a molecada se identificando nas fotos.


Tin chega de mansinho quando estamos muito cansadas (normalmente começando a preparar a atividade das 7h30 da manhã às 2h00 da madrugada): "Acho que preciso de um vídeo motivacional". Coloco a apresentação de slides pra rodar rapidamente e ficamos quietinhas olhando atentamente as fotos, lembrando porque vale à pena dormir às 4h00 e acordar às 6h00.

Irrigar é cool. Irrigar tem que ser cool.
Irrigation Membership Cards organizam os estudantes e lhes mostra sua importância dentro do time. Mapa da shamba, com maquetes de crocodilos ilustrando o rio e coqueiros, mostra as áreas de irrigação e nos dá informação para analisar nosso desempenho (foi assim que contamos 1250 plantinhas crescendo e decidimos quais áreas devemos replantar).

Estamos criando soluções visuais para cada uma de nossas necessidades. E a respostas têm sido fantásticas quando pintamos placas para as shambas, desenhamos um gráfico sobre o tempo de decomposição de resíduos (ainda que o pneu desenhado pela Kristina pareça qualquer coisa no mundo menos um pneu) e montamos um calendário de irrigação organizado por cores ("você não é inteligente, você é um gênio" disse Mwalimu).
E minha veia designer se orgulha dos resultados e deseja colorir muito mais que folhas de papel.

Novidades da shamba

Choveu em Magoma!
Pela primeira vez desde que plantamos nossas melancias tivemos praticamente uma semana de chuva constante. E temos flores brotando nos pés de melancia, sinal de frutas a caminho :)
Segunda-feira dividimos times de irrigação, com carteirinha com foto e cores dividindo o trabalho. Um dos nossos maiores desafios tem sido encontrar um equilíbrio entre educação e lucro, os dois objetivos que nos movem. Os estudantes devem aprender para que tenham condições de levar o conhecimento para suas vidas. A shamba deve dar lucro para implementarmos o Programa de Alimentação no início do ano.
Depois de um mês testando abordagens diferentes e fazendo as correções necessárias, chegamos a uma fórmula em que os estudantes irrigam três vezes por semana, das 7h00 às 10h00, e trabalhadores contratados irrigam três vezes por semana, das 16h00 às 19h00.
A shamba tem nove fileiras de melancias que foram divididas em três áreas. Cada grupo (times A, B e C) é responsável por um conjunto de três fileiras (A, B e C) e trabalha na terra uma vez por semana. Com isso garantimos revezamento entre estudantes para que o trabalho seja dividido com justiça e todos os grupos tenham as aulas regulares na escola além do aprendizado prático na terra.
Para tornar o trabalho cool fizemos Irrigation Membership Cards para os estudantes, com suas fotos, cores para os times e um pequeno lembrete do que deve ser observado no trabalho na shamba.

Mas, lembrando o começo deste blog, choveu esta semana. Dividimos os grupos, mas não houve necessidade de irrigação (o que foi ótimo em semana de provas na escola). As cores, mapas e todo o esquema visual que criamos devem ganhar os holofotes semana que vem.

Pp. A chuva nos presenteou com água marrom em Magoma. Fato que a água nunca foi transparente. Fato que os banhos sempre foram de caneca. Mas o que fazer quando a água está tão marrom que não conseguimos ver o fundo da caneca quando vamos tomar banho?

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

1 momentum para 813 pares de olhinhos

Foi o cenário abaixo que encontramos na escola e confesso que isso nos deixa enlouquecidas (pra manter a educação), mas também nos enche de motivação pra continuar trabalhando.

As crianças comemoram cada vez que entramos na sala de aula. Os sorrisos se espalham e os olhinhos pequeninos brilham, comovente.
Imagino como elas se sentem tendo as duas mulheres mais cool de Magoma as "ensinando" (elas nos consideram professoras). Eu sei que nós não somos tão legais assim, mas para aquelas crianças somos Dada Ana e Dada Kristina, mulheres que vieram de muito longe (verdade) e escolheram gastar suas horas e energias trabalhando na escola (verdade também). E todo mzungu é especial (mentira).

Aliás, esse status mzungu deve ser muito similar ao Big Brother: de repente todo mundo te observa, de repente você é super interessante, de repente você volta pro mundo anterior (Brasil no meu caso) e ninguém te dá à mínima. Aí você descobre que não é tão legal assim, só mais um na multidão.
Prometo que contarei a sensação daqui a alguns meses quando meu avião pousar em São Paulo. Por enquanto tenho tentado usar essa energia, esse momentum que sou capaz de criar, a favor do projeto. A favor das crianças.

As atividades na escola buscam criar vínculos entre as crianças e as shambas, expondo os objetivos, o planejamento, as razões para cada tomada de decisões. E mostrando que cada centímetro daquelas duas terras lhes pertence. Por isso são eles que escrevem a sinalização, que mapeiam as melancias, que pesquisam as árvores mais adequadas para crescer, que trabalham na terra.
Às vezes isso significa levarmos sozinhas 112 crianças de 1ª série pra desenhar melancias. Às vezes isso significa usar toda nossa paciência explicando uma atividade por uma hora para uma professora. Muitas vezes isso significa crianças ansiosas querendo participar do que estamos propondo, ou super tímidas com a liberdade que estão adquirindo durante uma discussão.

Momentum gerado. Agora é continuar trabalhando muito (das 5h30 às 0h00) para que ele gere uma vida melhor para 813 pares de olhinhos esperançosos.

Educação na Tanzânia

A estrutura da Escola Primária Kwata é sem dúvida deficiente. Isso não me causa espanto ou surpresa e tenho certeza que vocês também não esperavam nada diferente. O problema tem sido encarar a falta de comprometimento dos professores, o sistema educacional desorganizado e os fimbos...

Como temos passado bastante tempo na escola, aplicando diferentes atividades para todas as séries, temos visto a dinâmica do dia-a-dia: estudantes esperando professores por longos períodos, professores comprando verduras do lado de fora da sala de aula, professores MUITO atrasados após cada intervalo, classes sem nenhum professor enquanto a sala de professores está lotada, estudantes correndo sobre as carteiras (literalmente) e pendurados nas janelas.
Em algumas classes encontramos dois professores sentados um de frente para o outro (o que significa de costas para os alunos). Nessa mesma classe os 150 alunos têm que andar sobre as carteiras para chegar a um lugar vazio de tão próximas que as carteiras estão, enquanto três salas são usadas para guardar entulho.

Cada atividade tem o desafio do barulho já que com tudo isso acontecendo sempre temos estudantes berrando nas janelas e espiando curiosos a atividade que estamos fazendo. Tenho total consciência que o barulho me traz muito mais incômodo que a qualquer criança, elas cresceram neste ambiente e convivem com altos volumes desde que nasceram: Magoma é incrivelmente barulhenta, pastores malucos começam a pregar com alto-falantes às 23h00, os vizinhos escutam música no último volume a partir das 6h00, os galos gritam e as crianças choram às 5h00 (podíamos ouvir o barulho do topo da montanha que escalamos), as mesquitas anunciam as horas de rezar em alto-falantes (seis vezes por dia).

Os fimbos constituem um capítulo a parte. São a versão tanzaniana da minha memória de infância sobre estórias com varas de marmelo e palmatórias. Quando cresci já não era permitido aos professores bater nos alunos, pelo menos em São Paulo.
Aqui é considerado natural e até encorajado bater nas crianças com fimbos. Em diversos momentos estamos na sala do diretor e somos abordados por um estudante:
Hodi (Com licença).
Naomba fimbo (Desejo um fimbo).
Hamna (Não há nenhum).

Nunca há fimbos, seja porque eles realmente não estão lá, seja porque nos recusamos a entregá-los.

Tenho consciência que os professores recebem salários baixos e não são bem preparados, mas meu idealismo me impede de usar isso como justificativa.

O fato é que temos passado horas e horas com os estudantes, em alguns momentos apenas Kristina e eu para 112 alunos de 1ª série. E nunca precisamos de um fimbo para manter a ordem ainda que nosso conceito de ordem esteja a quilômetros-luz de distância do conceito de ordem de qualquer pessoa por aqui.

Kristina pergunta: "Is there any learning happening here?"

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Estudantes superstars!

Os estudantes são superstars!

Clique aqui para ver as fotos da nossa semana de atividades educativas e super divertidas.

Semana passada, iniciamos nosso plano de atividades para os estudantes. Nosso objetivo é agressivo, uma atividade por semana para cada série envolvendo educação e agricultura e expondo os alunos a experiências que não fazem parte do currículo escolar regular.

Os alunos estão, cada vez mais, se considerando os “donos” das duas shambas que estamos montando, a de melancias e a de árvores. Estão aceitando a responsabilidade de cuidar das áreas e olhando com carinho para o empenho de todos nós em fazê-las produtivas.
É impressionante como vemos esguios alunos magricelos crescerem a cada atividade na shamba. Mesmo quando expostos a atividades com as quais não têm nenhuma intimidade se envolvem, participam e aprendem, com muito mais facilidade do que eu imaginei que aconteceria.

1ª e 2ª séries estão desenhando o crescimento das plantas. Cada aluno recebeu uma folha sulfite dobrada em quatro e a cada semana levamos os estudantes para desenho de observação. Começamos com um lápis de cor para cada estudante, mas planejamos montar grupos e tê-los usando diversas cores em seus desenhos ao longo das quatro semanas.

3ª série escreveu um TANGAZO (anúncio). Temos um senhor que é contratado para andar pelas ruas de Magoma no meio da noite anunciando alguma coisa, que varia de enterros a eleições. Sempre nos divertimos quando o ouvimos bater as panelas e gritar TANGAZO TANGAZO TANGAZO (às vezes às 4h00 da manhã! Quem está em estado consciente para assimilar a informação às 4h00 da manhã?!).
O anúncio da 3ª série diz: “Somos a 3ª série da Escola Primária Kwata. Nós dizemos: é proibido levar animais para a fazenda da escola primária. Muito obrigado” (o gado e as cabras comem as árvores que estão crescendo).
*não contem para ninguém, mas esta atividade realizará um dos nossos maiores desejos em Magoma: contratar o Homem-Tangazo.

4ª série entrevistou senhores e senhoras de Magoma sobre árvores. Crianças não andam em grupos supervisionados em Magoma, grupos de alunos entrevistando pessoas nem pensar. Por isso mesmo foi delicioso ver os grupos se espalhando por diversas áreas da vila e buscando wazee (senhores) e bibis (senhoras) para entrevistar. Cada grupo foi acompanhado por um adulto.

5ª série foi apresentada a seis problemas que devem ser considerados na escolha do melhor lugar para o berçário de árvores que estamos montando. Em grupos, discutiram os problemas e apresentaram sugestões de áreas. A melhor sugestão foi eleita em votação.
Esta atividade consumiu uma hora do nosso tempo não para envolver os alunos, para neutralizar a professora que estava em sala. Ela não conseguia entender que a discussão entre grupos com liberdade, ou que os alunos não nos entregariam nenhum papel no fim da aula. Sua interferência quase nos tirou do sério até que alguns exemplos cotidianos iluminaram nossa explicação.
A atividade acabou sendo muito produtiva e para ser justa com a professora, ela nunca abandonou o barco.

6ª série fez um mapa da shamba, marcando em um mapa que desenhamos previamente onde temos melancias crescendo e qual o tamanho da planta. Nós pensamos que seria difícil explicar esta atividade para as crianças, os mapas eram compridos, com marcações de A a AE. Mas os alunos fizeram um excelente trabalho e entenderam tudo rapidamente.
Esta sala nós simplesmente chegamos à escola e levamos conosco. Não havia professor em nenhum lugar e nosso tempo estava apertado.

O treinamento da semana foi em Manejo de Resíduos com aula prática de compostagem. Foi delicioso ver a 6ª série correndo para checar o andamento da compostagem no dia seguinte ao treinamento.

Os estudantes nos adoram e nós os adoramos também. A cada passo que damos na vila encontramos um estudante nos cumprimentando e muitos nos perguntam animados quando será a próxima atividade para sua série.
Caminhando hoje com Kristina comentamos que após uma semana de atividade todas as crianças de Magoma se consideram nossas amigas. E mais do que nos conhecer, acho que elas sentem que nos possuem.
Considerando que passamos cada hora de nossos dias trabalhando no projeto, caminhando da shamba para a escola, da escola para a shamba e depois para casa para escrever relatórios e preparar atividades para o dia seguinte, estou bem certa de que elas têm razão.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Sintomas de Magoma

Às vezes as pessoas me chamam de Kristina ou chamam Kristina de Ana e hoje nós duas respondemos a ambos os nomes sem distinção. Ainda que seja carinhoso ter toda uma vila falando com você (depois de 3 meses ainda causamos furor) não há como não sentir uma mistura de alívio por ouvir nossos nomes substituirem o antigo "mzungu" e incômodo por atrair tanta atenção.
Ouvir Kristina nas ruas, depois que Kristina voltar pro Michigan, me fará me sentir menos sozinha. Ouvir Kristina nas ruas, depois que Kristina voltar pro Michigan, me fará me sentir menos eu.

O deslumbramento com as estrangeiras é sintoma do isolamento.

Temos um apelido para os ônibus de Magoma que não posso nomear aqui. Há tanta gente dentro do ônibus e a cada uma das 24 paradas de Magoma a Korogwe mais pessoas acham espaço para entrar. "Songea kirogo", versão tanzaniana pra "aperta mais um pouquinho" ou "all the way down" faz milagres.
As paradas são frustrantes porque grupos de pessoas esperam a 10 metros um do outro e o ônibus pára duas vezes, prolongando a viagem (38km percorridos em 2 horas).
Muitas vezes, pessoas que vão descer nas primeiras paradas estão no fundo do ônibus e têm que se espremer em espaços inexistentes para chegar à única porta.
Certo dia nos venderam bilhetes para os assentos 5 e 6. Detalhe: o ônibus só tinha 4 poltronas por fileira.

Os ônibus de Magoma são sintoma da falta de planejamento.

A comida nacional da Tanzânia é ugali. Ugali é uma pasta de farinha de milho com água cozida, normalmente, no chão, com a panela equilibrada sobre pedras e lenha como combustível. Ugali não tem qualquer tempero, nem mesmo sal. O acompanhamento varia entre dagaa (peixes muito muito muito pequenos comidos inteiros como saíram da água, fritos e mantidos por dias sem refrigeração) ou mboga mboga (alguma verdura cozida).

Ugali é sintoma da falta de criatividade.

Estou lendo um livro chamado Eat, Pray & Love.
Aprendam com meu erro, quando viajarem para um país que não fala sua língua para trabalhar com pessoas que também não falam sua língua, levem livros escritos na sua língua. Eu, estupidamente, vim para a Tanzânia falar inglês com a equipe americana (confortável) e falar Kiswahili com os tanzanianos (ainda desconfortável, melhorando a cada dia) e trouxe dois livros em inglês para ler.
Lógico que após poucas semanas eu quis trocar livros com meus amigos americanos. Lógico que eles não tinham qualquer livro em português, que me fizesse sentir-me abraçada e totalmente compreendida.
De qualquer forma, foi assim que Eat, Pray & Love chegou às minhas mãos. E lendo o capítulo da Itália me deliciei com o pensamento de que cada cidade do mundo tem uma palavra que a descreve e que todas as pessoas que vivem nessa cidade têm dentro de si.

De acordo com o livro, a palavra de Roma é SEXO. E do Vaticano é PODER.
Ponderei para concluir que a palavra de São Paulo é DINHEIRO. E a palavra de Salvador é ENERGIA (amigos baianos me corrijam se eu estiver errada).

Pensei muito na palavra de Magoma e só me vieram à cabeça as palavras que não temos aqui. Acho que a palavra de Magoma é FALTA. Mas espero que trabalhando duro com a criançada possamos vê-la substituída por POTENCIAL, SONHOS ou MUDANÇA.

Pp. Quando estiverem viajando pela Tanzânia e alguém lhes oferecer um livro que tem “Eat” no título e passa pela Itália recusem! Foi doloroso sonhar com queijo, pizza, massa...

sábado, 30 de outubro de 2010

Ficando além do planejado

Estou vivendo em Magoma desde julho e estamos em uma fase muito significativa do projeto, vendo tudo que planejamos (e sonhamos) acontecer e mantendo os olhos abertos pra fazer os ajustes necessários. Fase de trabalho duro e de muito sol na cabeça.
Melancias, pimentões e ngogwe (espécie de berinjela africana) serão colhidos em janeiro. Todas as projeções de mercado, feitas e checadas inúmeras vezes com as 3 Pedras e com os técnicos em agricultura, são bastante promissoras. Kristina e eu ficamos hesitantes com tanto otimismo e buscamos garantias e contatos no mercado para viabilizar as projeções.

Para ter um projeto bem resolvido temos que ajustar resultados, corrigir os erros e melhorar o que pode ser melhorado equilibrando os valores que estamos propondo com a necessidade prática de ação (vou explicar um pouco melhor esta frase em blog sobre as melancias).
Se eu voltasse em dezembro nós não teríamos a chance de acompanhar a venda da colheita e por experiência anterior (Projeto Korogwe, ano passado) sabemos que resultados não colhidos simultaneamente às frutas são resultados perdidos. E como me foi lembrado esta semana, este pedaço do mundo não vive tantos problemas há centenas de anos à toa: muitos aspectos contribuem simultaneamente para as dificuldades. Ou seja, muita coisa pode dar errado.

Nossos amigos em Magoma estão felizes com a minha decisão de ficar mais tempo, agradecem-me frequentemente. Pergunto-me por que exatamente estão me agradecendo, até me lembrar que todos consideram a vida aqui difícil e provavelmente me agradecem pela disponibilidade em viver uma vida que eles mesmos não viveriam se tivessem escolha.

A ingenuidade de Magoma pinta um mundo muito melhor no mundo wazungu. E não há distinção de países, continentes ou idiomas; todo o mundo fora da Tanzânia é um mundo pasteurizado pela falta de referências ou informação.
As pessoas não sabem nada sobre mendigos nas ruas de São Paulo, sobre tiroteios nos morros do Rio ou sobre a seca no sertão de Pernambuco. Tampouco sabem sobre bombas no Iraque ou fome no Haiti. Qualquer país do mundo terá tratores disponíveis, casas com energia elétrica e dólares ao esticar da mão.
Eu mostro fotos, mas fotos sempre imobilizam cenas que são mais duras com som e movimento. Minhas fotos são o paraíso.

Acho que me agradecem porque tomo banho de caneca, passo o dia na shamba debaixo de sol escaldante e cozinho com querosene. Acho que me agradecem por estar marrom de poeira a cada passo que dou fora de casa ou por beber água marrom (faço chá para mascarar a aparência e o gosto da água do rio).

A verdade é que me acostumei. Banhos de caneca refrescam e limpam meu corpo. Eu gosto do sol, ainda que minha pele fique mais manchada a cada dia e eu não goste das manchas. O cheiro de querosene é ignorado pelo meu nariz e a poeira vai embora com aquela caneca que descrevi logo atrás. Chá me faz sentir gosto de Brasil a cada gole e quando meu estoque de chá brasileiro acabar, muito em breve, farei chá com ervas locais e me sentirei super saudável.
Claro, geladeira e forno me trariam um mundo de possibilidades, mas temos sido bastante criativas na cozinha (pena que não haja criatividade capaz de fazer sorvete sem refrigeração...). Até o banheiro buraco no chão me parece simpático hoje em dia (ainda que a falta de um sistema efetivo de escoamento me incomode com certa frequência).

De qualquer forma nada disso importa. Estou aqui pra trabalhar naquela frase "muita coisa pode dar errado" e torná-la um "vamos fazer isso dar certo".
Magoma, vamos fazer isso dar certo juntos!

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Divisão de Gêneros

Uma das batalhas que temos enfrentado em Magoma é a divisão entre homens e mulheres, meninos e meninas. Muitas tarefas são identificadas como femininas ou masculinas e não é fácil quebrar este paradigma.
Temos as meninas trabalhando na shamba (sítio), mas naturalmente elas se dedicam a cozinhar (nada fácil, panelas gigantescas aquecidas a lenha), buscar água (implica andar muitos metros, às vezes quilômetros, equilibrando pesados baldes na cabeça) e buscar lenha (escalar a montanha para achar madeira e trazê-la de volta na cabeça).
Os garotos operam a bomba de irrigação, abrem e fecham as entradas dos jardins e aprendem mais, já que as meninas executam as mesmas tarefas que executam em casa. Indo além, os meninos se divertem mais.

Kristina e eu somos mulheres, impossível não buscarmos igualdade entre gêneros. Nosso status de mzungu nos permite (e obriga) a fazer coisas indisponíveis para outras mulheres. Um bom exemplo:
Certo domingo houve uma grande mobilização da comunidade pela Crisma de diversas crianças. Estávamos na missa quando fomos informadas, junto com todos os presentes, que jantaríamos com o arcebispo de Dar es Salaam, a caminho de Magoma para celebrar o evento.
O jantar foi curioso, para dizer o mínimo. O padre decorou sua casa cobrindo todas as paredes com tecidos coloridos e preparou comida para o arcebispo, sua comitiva, os senhores da igreja e nós – éramos Kristina, eu e 16 senhores na sala. O arcebispo fala algumas palavras de português e conhece Traverse City, a pequena cidade no Michigan de onde Kristina vem - o que nos fez muito felizes, mas não tira o inusitado da situação.

Pressionamos todo o tempo para ter meninas na irrigação e nos treinamentos, mas confesso que a participação das meninas ainda não me satisfez – lidar com a divisão de gêneros é um desafio constante. É frustrante não vê-las cheias de energia e com fome de conhecimento, como vemos os meninos. Mulheres em Magoma trabalham pesado e nos perguntamos todo o tempo quando meninas se tornam mulheres. Mais do que isso, temos a consciência de que para ter um mínimo de independência e segurança cada uma dessas meninas terá que trabalhar muito mais do que qualquer homem para conquistar seu espaço.

Pessoalmente acho divertido cutucar os conceitos e observar a reação de nossos parceiros a sugestões como: devemos ter um dia invertido na shamba, com meninos cozinhando e meninas irrigando. A verdade é que este tipo de sugestão jamais surgiria dentro da comunidade de Magoma e de certa forma cabe a nós chacoalhar os valores. Somos mulheres, somos estrangeiras, conhecemos outras realidades. E por mais que sejamos hoje parte desta comunidade não podemos limitar nossos pensamentos ao que vivemos aqui ou estaríamos fugindo de nossa responsabilidade.
Duas sementes plantadas juntas, nossa cultura e a cultura tanzaniana, devem gerar uma plantinha híbrida, com novas possibilidades a sua frente. Que sejam novas possibilidades para meninos e meninas.

Pp.: As meninas fizeram um excelente trabalho hoje de manhã, ajudando na irrigação e plantando sementinhas. Não posso dizer que foi perfeito, mas foi um bom começo.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Sem água no céu, com água nos olhos

A shamba (sítio) tem me proporcionado os melhores momentos. Estar ali com os estudantes, enxada na mão, trabalhando sob o sol e vendo a maneira como eles trabalham, aprendem e interagem me enche de orgulho pelo projeto que montamos. O vento bate no fim da tarde para refrescar e renova o suor e o espírito (dias cada vez mais quentes por aqui). Aliás, o vento é essencial em Magoma – Kristina sempre diz que estamos no caldeirão do 2Seeds, no centro de um vale e (muito) aquecidas pelo sol.
A revelação entre os estudantes é um garoto da 5ª série, Luka. Se eu fosse uma menina estaria apaixonada por ele. O garoto opera a bomba de irrigação, trabalha o dia todo com um sorriso no rosto e ajuda os colegas a fazerem um bom trabalho.

A irrigação funciona da seguinte forma: um tubo de aproximadamente 2 metros leva água do rio à bomba de irrigação. A bomba impulsiona a água através de mangueiras de 200 metros de comprimento. Movimentamos esses canos pelos canais, abrindo e fechando com terra a entrada de cada jardim, para garantir que a água chegue a todas as sementes (acho que fica mais claro vendo as fotos, clique aqui para ter uma idéia).
E quem faz tudo isso são os estudantes, meninos e meninas da 4ª a 6ª série.

Sem água no céu, com água nos olhos

Quando trabalhamos o dia todo cozinhamos almoço na terra, debaixo de uma grande árvore que está fortuitamente localizada no centro da plantação. Às vezes comemos ugali (comida nacional, uma pasta de milho que normalmente é comida com verdura ou peixinhos MUITO pequenos). Semana passada o almoço foi makande (milho cozido com feijão).
Fico impressionada vendo os meninos bebendo 10 (!) copos de udi (mingau de milho com água e açúcar) e comendo 3 pratos gigantescos de makande. Comem como adolescentes, ainda que não passem de crianças.

Uma cena que nunca vou esquecer aconteceu ao final da tarde. Eram 16h00 quando terminamos o trabalho, começamos 7h30.
Pude notar sorrisos nos meninos, daqueles que só vemos quando eles estão aprontando alguma coisa (meus anos trabalhando em acampamento me permitem reconhecer os sinais).

Um saco plástico preto passa de mão em mão. Uma tampa azul de balde é trazida para a cena. Vejo os meninos virando o saco na tampa. O que é isso? Makande...
Os meninos guardaram o makande que sobrou do almoço no saco plástico preto, que havia sido usado para levar cinzas de espiga milho que espalhamos junto com as sementes para espantar formigas. E os 20 meninos, depois de 10 horas trabalhando sem parar, comeram a mistura de milho, feijão e cinzas como se fosse sorvete de chocolate (supondo que eles soubessem que sorvete de chocolate existe).

Mzee Francis olhou para mim e disse: muitos deles não encontram jantar quando chegam em casa. E minhas lágrimas tiveram que ser escondidas com alguns passos em direção às plantinhas mais próximas.

A chuva, que deveria ter vindo em setembro, não nos refrescou até agora. Muita gente acha que não teremos chuva este ano.
A bomba de irrigação ajuda as plantinhas, que em breve serão redondas melancias, a sobreviver. E minhas lágrimas salgadas trazem mais algumas gotas de água para a cena, que me lembra porque estou vivendo tão longe das pessoas que amo.

Treinamentos para watoto

É difícil descrever a sensação que temos tido nas últimas semanas aqui em Magoma. Muito do que trabalhamos tanto para proporcionar está acontecendo.

Os dias têm sido ocupados por tardes de irrigação, manhãs de treinamento e muito trabalho. E estamos felizes :)

Os estudantes já receberam dois treinamentos: Manejamento de Recursos Hídricos e Conservação do Solo. Os profissionais de agricultura vêm de Korogwe para oferecer treinamento aos estudantes. E o desafio acontece na novidade da ação, primeira vez que os treinamentos são direcionados a crianças (watoto).
Não é difícil sentir certa apreensão nas vozes dos palestrantes ao início dos treinamentos, mas acho que a resposta sorridente ao "Hamjambo Watoto?" (Tudo bem, crianças?) e o jeito despreocupado que as crianças batem palmas ao final dos treinamentos (há uma coreografia para isso) são boas recompensas.

Os palestrantes não estão recebendo dinheiro pelos treinamentos, acordo que fizemos com o Chefe do Distrito. Fica clara a insatisfação de alguns deles, mas não vamos pagá-los para fazer o que é responsabilidade de seu cargo e não queremos estabelecer este parâmetro para o futuro do nosso (e de outros) projetos. Tenho dedicado algum tempo a pensar em incentivos (que não sejam dinheiro) que possam fazê-los sentir-se recompensados. Confesso que não encontrei uma solução até o momento.

O treinamento em recursos hídricos foi uma grande surpresa, já que o Oficial de Irrigação estava visivelmente descontente por vir a Magoma sem pagamento extra. Mas se mostrou um bom profissional e proporcionou um excelente treinamento para as 20 crianças e 2 professores presentes, Mr. Bodo e Mzee Francis.
O treinamento em conservação do solo foi oferecido por uma senhora doce que claramente entende a importância de disponibilizar conhecimento aos estudantes. Ela teve que vir no domingo e dormir numa pensão para estar aqui no horário combinado. E fez questão de conhecer nossa shamba após o treinamento. Infelizmente o treinamento foi explanativo e não conseguiu envolver as 38 crianças presentes, que se cansaram rapidamente.

Um custo que não havíamos projetado antes dos treinamentos foram os cadernos que compramos, pois as crianças não tinham onde fazer anotações (TSH250 cada – US$0,17). Outras ONGs na região compram refrigerantes e pagam as pessoas que recebem treinos, incluindo TSH10.000 por um treinamento para cultivo de mangueiras (muito dinheiro!).
Nós discordamos. Compramos uma garrafa d´água para o palestrante e cadernos para as crianças. E queremos que ambos compareçam ao treinamento pelo motivo certo: conhecimento e oportunidades.

As pessoas vivem com (muito) pouco em Magoma. Muitas vezes itens simples como cadernos (ou comida) faltam no dia-a-dia. Escolhemos lidar com isso proporcionando ferramentas para que essas pessoas possam batalhar por um futuro mais colorido. E possam comprar refrigerantes com seu próprio dinheiro.

Próximos treinamentos:
Manejamento de resíduos
HIV
Reflorestamento
Igualdade entre sexos.

Por vir:
Extensão dos treinamentos com aulas práticas que pretendemos desenvolver com os Oficiais de Irrigação.
Estudantes ensinando estudantes e disponibilizando conhecimento para a comunidade.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Montanha do abismo subestimado

Magoma fica entre duas grandes montanhas. A vila de Makangara, vila central de Magoma, é um pequeno aglomerado de casas circundado por plantações de milho (longe do rio, à esquerda da estrada) e arroz (perto do rio, à direita da estrada).
Desde a primeira semana, Kristina e eu pensamos em escalar as montanhas.

A montanha menos alta (não dá pra dizer que é baixa) fica atrás da nossa casa. São três montanhas, como um camelo de três corcovas (eu sei que não existe, só estou imaginando) em crescente, da montanha mais baixa à mais alta.
Combinamos escalar esta montanha assim que todas as sementes fossem plantadas e assim seguimos ontem, 5h30 da matina, com uma garrafa de água cada e um pequeno pacote de tâmaras que Mzee Malingumu nos deu de presente: "No meio de uma longa jornada você só precisa de uma ou duas tâmaras e está alimentado, tudo fica bem".

A primeira montanha era íngreme, mas possível. Chegamos ao pico e nos enchemos de coragem pra continuar a caminhada. "Não podemos estar tão longe" dissemos uma à outra.

*Minha analogia à primeira montanha é a busca dos parceiros ideais para montar o projeto conosco. O início de tudo e a base para todas as decisões que se seguiram.

Momento mais engraçado do dia: sentamos em uma pedra, ainda antes do pico da primeira montanha, sem ar, pra admirar a paisagem (ok, pra descansar também, mas a paisagem era mesmo linda). Só nos esquecemos de um detalhe: em Magoma você nunca está sozinho, por que ali seria diferente?
De repente surge uma Bibi (vovó) por uma pequena trilha, apoiando em um pedaço de madeira e carregando um machado equilibrado na cabeça. Bibi, vendo as wazungu (brancas), disse: vocês têm que subir ao topo, dá pra tirar umas boas fotos lá!
Assistimos Bibi continuar sua caminhada montanha acima enquanto recuperávamos o fôlego. Seu desejo é uma ordem, Bibi, estamos a caminho!

Em algum momento perdemos a trilha (quem roubou as placas de "2º pico, à esquerda" ou "Welcoming-cocktail para hóspedes do resort à direita"?). Os caminhos não passavam de tortuosos rastros que indicavam que alguém (ou alguma coisa) passara por ali algum dia, cercados por árvores de espinhos afiados (por que as plantas aqui são sempre tão dolorosas?).
Fomos encontrando espaço no meio dos espinhos e arbustos, até que olhamos para a esquerda assustadas. Kristina disse "Holy shit!". O abismo estava bem ali, a alguns passos de nossas perninhas cansadas, como não vimos isso chegando?
Fomos subindo lentamente, com todo o cuidado para não cair, a cada três passos uma dizendo à outra "Não caia!". Os pés tentando achar onde apoiar e o corpo se escorando nas poucas árvores para respirar.

Após algum (longo) tempo nos vimos em um trecho um pouco mais plano e conseguimos nos localizar melhor. O pico da segunda montanha estava sob nossos pés ganhando o contorno da terceira montanha, a mais alta e nosso objetivo final.

*A segunda montanha foi nosso modelo de negócio, subindo sempre com um abismo logo abaixo caso fizéssemos alguma besteira. As terras que estamos trabalhando, a decisão sobre o que plantar, a preocupação em criar um modelo replicável para outros membros da comunidade.

A terceira montanha logo à frente (melhor dizer acima), só nos restava caminhar. E sobe, sobe, sobe, pernocas tremendo com o esforço. Quando alcançamos o topo fomos brindadas pela vista mais linda: Magoma pequeninha lá embaixo, as plantações de arroz, as duas Acácias (árvores) na chegada da vila. À distância foi possível ver todos os três lagos da região, incluindo Lago Kumba, muitos quilômetros longe.
O sol apareceu para iluminar o penhasco e nos dar um bronzeado (meio esquisito, marcas de calça arregaçada no joelho e múltiplas blusas).
Kristina olha pra mim e diz "Eu realmente subestimei esta". Olhamos o relógio e constatamos as 5 horas de subida para chegar ali.

Presenteei-me com a rebeldia de usar a parte de cima do biquíni por alguns minutos (saias acima do tornozelo são muito curtas para Magoma).

Algum tempo passou até eu olhar ladeira abaixo e constatar movimento. "Será que tem alguém ali?" penso. Ajusto o foco, olho melhor: uma família inteira de macacos! Kristina e eu, que sempre debochamos dos abrigos no meio da plantação de sisal para espantar macacos comedores de folhas, nos vimos 12 vezes erradas. Em Magoma nunca se está só...

*A terceira montanha, a concretização da idéia: o horizonte de sonhos à frente e o trabalho duro pra plantar esses sonhos nas sementes de melancia. Montanha escalada, sementes na terra.

Pensam que acabou? Que nada, essa era a montanha menos alta, lembram? A montanha mais alta ainda nos observa do outro lado, esperando a colheita e os resultados (e os inevitáveis ajustes que teremos que fazer).

As duas garrafas d água nos deixaram com sede, mas Mzee Malingumu estava certo: algumas tâmaras e você não precisa de mais nada, tudo fica bem.
A descida foi ao pôr-do-sol, por uma trilha mais distante do penhasco. 2 horas de caminhada e nossa linda Magoma nos esperando com seu chão vermelho craquelado.

Pp. cliquem aqui para ver as fotos da subida da montanha e da nossa linda fazenda de melancias.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Plantando melancias

Se eu não tivesse vivido um único bom dia aqui em Magoma, esses dias teriam feito tudo valer à pena.

Semana passada fomos plantar melancias – concretizar o projeto que batalhamos tanto para montar.
O grupo de estudantes variou entre 25 e 80, coordenados por Mwalimu Mkuu com ajuda de Mzee Francis e Mr. Bodo.
As aulas na Tanzânia acontecem da maneira mais impessoal possível, o professor escrevendo na lousa para um grupo de (muitos) alunos que podem ser punidos com tapas quando respondem as perguntas incorretamente. Não há interação, não há troca.
Na fazenda tudo foi diferente. Vimos os alunos fazendo perguntas e sugestões a Mwalimu Mkuu, se divertindo, trabalhando duro das 7h30 às 16h00.
O ritmo de aprendizado acertou o passo com o ritmo de trabalho. No início nos movimentávamos vagarosamente, irrigando os canais e montando os jardins. Conforme os alunos foram aprendendo o trabalho foi ganhando velocidade. Em um momento no meio da tarde atingimos o ponto em que todos os adultos estavam descansando enquanto os alunos faziam o trabalho (com eficiência) sozinhos.
Claro que nem tudo foi perfeito. A divisão de tarefas entre meninos e meninas carrega toda a desigualdade entre sexos que vivenciamos cotidianamente em Magoma. As meninas foram, nos dois dias que passamos com a enxada na mão, as primeiras a deixar a área. Isso me entristece porque meninas precisam trabalhar duas vezes mais pesado para ter algum controle sobre suas próprias vidas – eu queria tê-las ali, cheias de vida e fome de conhecimento.

Para os meninos que ficaram até o final compramos sorvete (gelinho, vendido pela esposa do Mr. Bodo). Utopicamente pedimos que as embalagens do gelinho não fossem jogadas no chão da fazenda – na Tanzânia se joga lixo exatamente no lugar em que o lixo é gerado, da janela do ônibus, andando na rua, na porta de casa, onde você estiver. Qual não foi minha surpresa quando cada um dos estudantes trouxe seu saquinho de sorvete para mim e o colocou no saquinho de lixo que eu estava segurando.
Sou ingênua? Sim.
Sou sonhadora? Sim.
Cada saquinho plástico que recebi, incluindo o saquinho de sorvete do Miga (agricultor que, nas palavras de Mwalimu Mkuu, trabalha pesado e foi chamado para ajudar os estudantes no trabalho), foi uma gota transbordando no nosso oceano de sonhos.

Enquanto plantávamos, ensinei um pouco de Português aos estudantes, que retribuíram me ensinando Kisamba (língua local). Ouvir "água", "melancia" e "boa tarde" me proporcionou conforto e felicidade. Mostrar cartões postais de São Paulo e saber que agora um pequeno grupo de pessoas que mora longe longe longe, em Magoma, sabe onde fica o Brasil e que falamos Português? Não tem preço!

sábado, 16 de outubro de 2010

3 pedras

3 pedras

Estamos na Tanzânia para trabalhar conjuntamente com a comunidade local, juntando nossos históricos e habilidades diferentes por um objetivo comum – 2 sementes plantadas juntas gerando uma única vida.
Uma parte significativa dos primeiros meses foi dedicada a encontrar os melhores parceiros e construir uma relação de confiança que nos permitisse extrair o melhor de todos os envolvidos e montar o projeto de forma sustentável e longeva.
Mzee Francis disse que para cozinhar à lenha, como acontece aqui na Tanzânia, são necessárias 3 pedras. Essas 3 pedras conseguem sustentar a panela no chão e manter a eficiência do fogo.
Nós temos 3 pedras segurando uma grande panela que, se tudo correr bem, cozinhará 813 refeições diárias, temperará a vida de 813 estudantes e servirá cabeças pensantes e ativas a uma sociedade que precisa desesperadamente de pensamento crítico e possibilidades.
É com grande orgulho que apresento nossos 3 principais parceiros:

Mr. Bodo – Gerente de Relacionamento (à esquerda)
Mr. Bodo é chairman do Comitê de Pais e Responsáveis da Escola Primária, do Comitê da Água para Uso Doméstico, do Comitê da Escola. É também membro do Banco Comunitário VICOBA, super interessante, em que as pessoas se organizam para ampliar suas possibilidades de investimento. Muçulmano, tem uma linda família – esposa, 4 filhos e (muitos!) agregados – e toma conta de diversos negócios da vila, como a Máquina de Farinha e um pequeno Café (que na verdade acontece na rua).
Acabou de comprar um modem para aprender a usar a internet no computador de seu irmão, o único em Magoma com exceção dos nossos notebooks e dos computadores das ONGs – esta semana fomos tentar ajudá-los a usar o tal computador e nos deparamos com as caixas ainda fechadas, servindo de mesa de cabeceira para Mzee Malingumu (o irmão) e sua esposa (a máquina foi comprada há 2 anos, mas nunca foi usada já que eles não sabem como ligá-la).
Mr. Bodo está sonhando em buscar fundos para comprar computadores para a escola assim que o empréstimo feito pela 2Seeds for pago e ambos os pedaços de terra da escola estiverem produtivos gerando refeições para os estudantes.

Mr. Simoni Mvung / Mwalimu Mkuu (Professor Chefe) – Gerente de Agricultura (no centro)
Mwalimu é um entusiasta, estudou em escola agrícola e entende de irrigação. Esta semana ele levou 2 grupos de alunos, 4ª, 5ª e 6ª séries, para plantar melancia. Ele não só é capaz de coordenar sozinho grupos que variaram de 25 a 80 crianças, como está se dedicando a garantir que cada um desses estudantes aprenda como fazer os jardins (pequenas áreas circundadas por canais por onde a água deve passar) e usar a bomba de irrigação.
Sua esposa também ensina na Escola Primária. Eles têm 4 filhos.
Mwalimu está batalhando para não ser transferido de Magoma e poder tocar o projeto por longo tempo. No início do ano, antes de chegarmos aqui, ele usou seu próprio dinheiro para comprar sementes e montar a pequena fazenda de milho que gerou comida para os alunos durante as provas.

Mzee Francis Mwankai – Gerente de Meio-Ambiente (à direita)
Mzee é um senhor, deve ter cerca de 70 anos (a idade exata não é divulgada). Membro da Igreja Anglicana, tem a habilidade de trabalhar em conjunto com pessoas de todas as religiões presentes em Magoma e de olhar para a pessoa, não para suas crenças. Faz parte de todos os comitês que visitamos até agora, trabalha ativamente pelo desenvolvimento da região.
Num lugar de poucos sonhos, Mzee cultiva um pequeno jardim no quintal de sua casa de pau-a-pique. As mudas são usadas para reflorestamento.
Mzee será responsável pela “floresta” que estamos começando na terra da escola, escolhendo as árvores mais adequadas e ensinando os estudantes a cuidar delas. Ele diz que a geração dele só consumiu os recursos e precisa ensinar a nova geração a gerar recursos antes que a Tanzânia se transforme em um deserto.
E não se engane pela idade, nosso querido Mzee passou o dia plantando melancias ontem conosco, com a enxada sobre o ombro e debaixo de 35° de sol.
Mzee também criou nosso slogan “Growing a New Generation” e definiu nosso grupo como “as 3 pedras”.

Curtas de Magoma

Estávamos voltando de Korogwe, carregando 55L de combustível no ônibus para abastecer a bomba de irrigação. O ônibus estava lotado, como sempre.
Em uma das primeiras vilas na estrada de terra, a moça que estava sentada conosco, com sua filha no colo, precisou descer. Nós estávamos no fundo do ônibus, que tem apenas uma porta junto ao motorista.
A irmã da moça se dirigiu à frente do ônibus para dizer “shusha” (desce) – os ônibus param em absolutamente qualquer lugar que você queira, incluindo paradas a 10 metros de distância uma da outra para pegar 2 grupos de pessoas que poderiam esperar juntos e contribuir para que os 38km de Magoma a Korogwe fossem percorridos em menos de 2 horas.
O ônibus parou e a moça, carregando o bebê de pouquíssimos meses, começou a se movimentar. Uma discussão intensa tomou conta da multidão. Em alguns segundos o ônibus decidiu que a melhor forma de lidar com a situação seria passar o bebê pela janela para alguém que estivesse no chão enquanto a mãe se espremia para alcançar a porta.
O bebê passou de mão em mão até o projeto estar completo. A mãe o recuperou alguns minutos depois quando finalmente conseguiu descer.

A propósito, o combustível chegou bem e já está sendo usado. Os galões, que inicialmente continham ácido sulfúrico 98%, foram exaustivamente lavados por Kristina e eu, com muita água e sabão, deixando marcas em nossas roupas. Tive que caminhar por todo o mercado no SOL em busca de galões (não, eles não são vendidos no posto de gasolina) até pagar TSH12000 por dois containers azuis que deveriam comportar 70L de combustível após serem bem lavados – comportaram 55L.

sábado, 9 de outubro de 2010

The saga of the sexy tractor

Estou parafraseando o título do blog da Kristina (http://themagomaproject.tumblr.com) – Kristina, do you read my blog?

Fase 1 - A terra da escola foi limpa por dois homens que trabalham pesado (palavras dos nossos parceiros – TSH60.000 / US$42).

Fase 2 – Kristina e eu compramos sementes de melancia, pimentão verde e uma variedade africana de berinjela; além de fungicidas e fertilizantes. As duas pequenas caixas estão aqui no meu quarto e olho para elas todas as noites vendo 813 refeições diárias durante três meses – motivador, apavorante e cheio de significado (TSH176.500 – US$122).

Fase 3 - Fui com Mwalimu Mkuu (diretor da escola e nosso Gerente da Fazenda) comprar uma pumping machine para bombear a água do rio e irrigar a terra. Compramos a máquina, 200m de mangueiras, um tubo que vai do rio até a máquina (TSH620.000 pelo conjunto – US$430) e 20L de combustível (TSH33.000 – US$23).

Fase 4 – aí é que começa a história...

Com a terra limpa, o próximo passo seria ará-la com o trator (TSH80.000 – US$55,40), já que ela não vinha sendo cultivada há algum tempo.
Não existem tratores em Magoma, as pessoas não têm dinheiro pra usá-los. Mas fomos informadas sobre três possibilidades de tratores que poderíamos contratar. Mwalimu disse que bastava ele ligar e o trator viria.

Ouvimos que o trator estava trabalhando em outra terra. Ouvimos que o outro trator tinha um problema no arado. Ouvimos que o primeiro trator estava quebrado. Ouvimos que o trator estava a caminho (longo caminho já que não chegou).
Foi uma versão por dia durante uma semana, até que Mwalimu e Mr. Bodo (nosso Gerente de Relacionamento) subiram em uma moto e foram para Kerenge (próximo ward*, algumas vilas de distância) para resolver o problema.

Levou dois dias, mas o trator chegou. E quebrou.

Quando vimos o trator ficou fácil entender o problema: máquina de 1975 (tem uma plaquinha do Brasil soldada na lataria!), zero de manutenção. Os pneus furam todo o tempo, o que se explica pela ausência de borracha.

Kristina deu o apelido de sexy tractor, não sei bem por que. Podemos considerar sexy o grupo de estudantes + 2Seeds + parceiros tanzanianos empurrando o trator, diversas vezes, para pegar no tranco (não, ele não tem bateria para ignição).

De qualquer forma nosso sexy tractor passou o dia trabalhando na terra ontem (comigo sentada sobre a roda fotografando a ação). Mais um dia (que será hoje se o motorista comparecer) e ele termina o trabalho.
Mzee (senhor, no sentido de o mais velho) Francis (nosso Gerente de Reflorestamento) está acompanhando cada etapa e supervisionando o trabalho. Aliás, a maneira como nossos parceiros têm trabalhado bem juntos, dividindo tarefas, se empenhando e tomando decisões em conjunto tem sido a parte mais motivadora da semana de espera pelo trator (afinal eles farão o projeto acontecer quando nós não estivermos aqui).

Próximas etapas:
1- Fazer os jardins (pequenas fileiras de terra com um “vale” de cada lado. As sementes ficam nas fileiras e os vales trazem água). Simultaneamente, montar um berçário para as plantas no cantinho da terra, até que elas estejam fortes o suficiente para serem transplantadas.

2- Irrigar a área com a pumping machine.

3- Estudantes plantando.

Que venha a primeira montanha!

* Magoma é uma divisão dentro do Distrito de Korogwe. A divisão tem quatro wards (deve ter um nome para isso em português, mas não me vem à cabeça): Kerenge, Magoma (sim, mesmo nome), Mashewa e Kizara. Os quatro wards juntos englobam 25 vilas, 28 escolas primárias, 4 escolas secundárias e 50.000 pessoas, aproximadamente)

Correndo ao nascer do sol

A que horas é possível correr em uma vila em que as pessoas sentam para assistir as wazungu (brancas) lavando roupas e malhar é palavra ausente no dicionário?

Para responder a esta pergunta tenho acordado às 5h30 da manhã todos os dias. O corpo funciona cheio de energia, despertando antes do alarme, desde que sentiu o gostinho da corrida ao nascer do sol.
Correr é engraçado. Eu odeio correr, sempre odiei, mas sempre corri esperando o dia em que vou sentir aquele click, aquele que todo maratonista menciona, e me sentir flutuando.
Não, este click não foi ouvido em Magoma (será que tenho que correr 42 km ou sou surda mesmo?).
Mas correr tem me feito um bem sem fim: sinto-me livre, sinto-me jovem; pronta para enfrentar qualquer desafio – endorfinas provando a teoria dos gurus da malhação.

Ontem estava correndo até Songea (próxima vila, 5 km). O fôlego estava faltando, mas pensei “só vou andar depois daquela árvore”. Foi quando ouvi “Pole sana!” (sinto muito). A árvore ficou muito longe, eu estava gargalhando! Duas mamas (mulheres adultas) estavam a caminho da shamba (fazenda de subsistência) e sentiam muito pelo meu esforço :S

Magoma fica no vale entre duas montanhas, uma mais baixa, a outra mais alta. Vamos escalar a primeira montanha depois de plantar e planejamos escalar a segunda depois da colheita (qualquer simbologia não é mera coincidência).
O sol nasce atrás da montanha mais alta e é um espetáculo ver tudo mudando de cor. No mesmo dia do “pole sana” três Timão cruzaram a trilha (não, o Pumba não estava presente).

Não consigo pensar em nada que eu odeie tanto e me faça sentir melhor.
Eu amo odiar correr todas as manhãs!

Comida em Magoma

Variedade não é a palavra adequada para descrever nossas possibilidades de cardápio em Magoma. Meus colegas americanos (como americanos comem!) sempre brincam que temos que garantir nossa segurança alimentar para poder batalhar pela segurança alimentar dos outros – “Prezados passageiros, em caso de acidente vista primeiramente sua máscara de oxigênio para depois ajudar a criança a seu lado”.
Faz sentido, ainda que seja brincadeira. Não estamos, em nenhuma circunstância, perto de insegurança alimentar - tenho até comido demais. O problema está na variedade e não na quantidade.

Costumo dizer que nossa principal fonte de proteína são as formigas (tempero presente em grãos, açúcar, farinha...).

Ovos, quando os achamos, parecem ovos de codorna – a não ser quando temos a sorte de tropeçar em lindos ovos de pata que fazem nossos olhos gulosos brilhar (são vendidos pelo mesmo preço, vai entender).

Vemos cabras por todos os lados (Kristina adora carne de cabra, eu sou vegetariana), mas nunca vemos pessoas comendo carne de cabra (o que é intrigante porque tenho certeza que elas as criam com essa intenção).

De vez em quando comemos folhas não identificadas – os chumaços murchando no mercado me partem o coração e sei que ninguém mais vai comprá-las. Às vezes algumas flores brotam antes de cozinhá-las, às vezes os cabos são inquebráveis mesmo para os dentes mais afiados.

Também compro raízes esquisitas, sou uma pessoa curiosa, mas Kristina tem medo de comê-las e serem venenosas (alguém precisa explicar a essa menina os princípios da Permacultura).

O chilli no domingo foi um capítulo à parte (agradeço Chris e Fabis por isso). Tínhamos apenas metade dos ingredientes, mas e daí?

Chris me disse que para fazer pimenta calabresa eu teria apenas que torrar as sementes de qualquer pimenta vermelha disponível. Hum, parece fácil...

Dedos ardendo – parte da minha rotina (eu ADORO pimenta, Kristina diz que seus hábitos alimentares foram alterados permanentemente depois de viver comigo).

Olhos ardendo – devia ter tirado as lentes de contato.

Tosse incontrolável – será que estou fazendo certo?

Falta de ar, incapacidade de respirar – socorro!

A fumaça dominou a casa e não conseguimos entrar por 20 minutos. Eu tossia sem parar, meu rosto vermelho e ardendo como se eu tivesse dormido no sol sem protetor. Kristina lavava roupas no quintal, longe da cena do crime, e chorava de tanto tossir.
O resultado foi usado no nosso delicioso chilli: uma colher de sobremesa de pimenta (quem disse que qualidade se mede pela quantidade?).

Também inventei uma receita de veggie burguer que levou meu estômago a SP.
E claro, achamos um peixe no meio dos nossos amendoins :)

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Growing a new generation

Como é Magoma:
Este lugar que se tornou minha casa tem terra vermelha, vento, sol forte e lama quando chove. Às vezes tem água, que as mulheres carregam em baldes sobre a cabeça. Às vezes não tem (estamos sem água há 2 dias e em breve terei que ir ao rio abastecer meu balde).
E é neste cenário que 813 crianças vão à escola todos os dias, da primeira à sétima série.
São 16 professores para 813 crianças e, acreditem, esta é uma boa média (a escola secundária tem 5 professores para 540 estudantes). A escola não tem energia elétrica e só recebe água duas horas por dia. Os uniformes brancos não são muito brancos (aqui, cada vez que pisamos fora de casa estamos sujos de poeira, não tem jeito. E a água que lava essa poeira é marrom, vem do rio).
As crianças estudam das 7h00 às 14h00 sem comer nada. Muitas delas não encontram refeições quando voltam pra casa também. Falar em nutrição é utopia pura.

Foi neste cenário que começamos a desenvolver o projeto. Pensamos em oferecer refeições aos estudantes. Pensamos em aumentar o valor nutricional do que eles estão comendo. Pensamos, principalmente, em proporcionar conhecimento para que esses estudantes possam buscar novos caminhos para batalhar pelos seus sonhos (e ajudar suas famílias a trabalhar sua terra de forma mais apurada).

Assim nasce o Projeto Magoma :)
A escola tem um pedaço de terra árida que está sendo subutilizada. Estamos trabalhando nesta terra para plantar árvores frutíferas, árvores para reflorestamento e árvores repelentes (se alguém conhecer alguma me avise, malária é um problemão aqui e seria de grande ajuda).
Primeiro passo: plantar uma cerca - viva de sisal (idéia do meu herói, John Mntambo) para que as cabras e vacas não comam as árvores.

A escola acabou de alugar um pedaço de terra fértil perto do rio, 2 acres. Neste pedaço de terra vamos plantar melancias, berinjela africana e pimentão (primeira temporada) e cebolas, espinafre e repolho (segunda temporada). Estamos trabalhando esta projeção para garantir:
a) Que os estudantes tenham a oportunidade de receber treinamento e aprender a lidar com diferentes culturas
b) Que o projeto seja lucrativo e proporcione dinheiro para a escola.
Com este dinheiro, estamos montando o orçamento para um Programa de Alimentação, uma refeição por dia para cada estudante.
Próximo passo: o primeiro passo já foi dado, escolher a terra e negociar o contrato. A terra começará a ser limpa amanhã, o que levará uma semana. Depois disso vamos contratar um trator para preparar o solo.

Temos um sem fim de sonhos e objetivos dentro deste projeto. Mas vamos começar assim:
a) 1 escola primária com 813 estudantes e 16 professores
b) 1 fazenda produtiva e lucrativa para retorno de curto prazo (assim esperamos)
c) 1 fazenda de árvores para retorno de longo prazo (que ajudará a estreitar a relação das pessoas com o meio-ambiente)
d) Treinamento para os estudantes sobre como lidar com o solo, melhores práticas de agricultura, como irrigar a área, como dividir o trabalho entre homens e mulheres
e) Treinamento para os estudantes sobre como planejar sua plantação orientando-a para o mercado: fazendo projeções de lucros e custos, escolhendo a opção mais atrativa e acessando os melhores mercados para vender a produção.
f) Um Programa de Merenda Escolar com uma refeição diária para cada estudante, financiado com dinheiro gerado pela própria escola e seus estudantes (e, portanto, sustentável)
A partir daí temos muitos caminhos para crescer, em número de escolas e em possibilidades. Mas este é o começo que estamos todos construindo juntos.
Se tudo der certo teremos uma Magoma com novas possibilidades em breve. E os jovens não precisarão deixar Magoma porque terão possibilidades de encarar suas fazendas como um negócio que pode gerar segurança alimentar e segurança financeira.

Dedicamos muito tempo a buscar as pessoas certas na comunidade e envolvê-las no projeto. Acho que temos algumas pessoas fantásticas trabalhando juntas, sobre as quais vou escrever mais, em breve.
E já temos um slogan, criado por um de nossos parceiros locais, Mzee Francis:
The Magoma Project – Growing a new Generation :)

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Estrelas cadentes

Outro dia o coordenador de projeto da World Vision Magoma veio jantar aqui conosco. Não acontece com freqüência termos visita para o jantar e confesso que acho divertido ainda que seja bem trabalhoso cozinhar com uma única boca de fogareiro movido a querosene e sem geladeira ou forno.
Precisávamos de tomates (ele avisou que viria quase na hora do jantar e não há supermercados em Magoma). Maria me disse que há uma vendinha aqui perto, eu não conhecia, então fomos juntas. Na verdade é uma casa, em que a dona vende tomates, cebolas e ovos na janela. A noite estava linda, magnífica na verdade.
Infelizmente não tenho aproveitado muito as noites de Magoma, não há muito que fazer, especialmente para mulheres. Como não há iluminação pública e 90% das casas não têm energia elétrica, é possível ver milhões de estrelas.
Quando a lua está cheia ando sem lanterna, mas quando não há lua vou com a lanterna do celular, já que há buracos para queimar o lixo espalhados pelo chão e não seria muito agradável cair em um deles.

Nessa noite, com Maria, comentei que adoraria ver uma estrela cadente. E descobri que Maria não faz idéia do que é uma estrela cadente...
Primeiro ela me perguntou se a estrela cairia até o chão. Depois ficou olhando pro céu, admirada.
Não saber o que é uma estrela cadente significa nunca ter feito um pedido para uma estrela cadente. Em Magoma as pessoas não fazem pedidos para estrelas, não sopram velas de aniversário, sonhos são raros. E isso sempre me deixa triste porque é um dos símbolos da falta de perspectiva, da ausência de desejos e tradições doces e frívolas. A vida não tem essa leveza e provavelmente ninguém acreditaria que um pedido a uma estrela possa se realizar.

Eu estou aqui, batalhando por Magoma. E buscando pessoas de Magoma dispostas a batalhar por Magoma também. Encontrei algumas, mas todas tão temporárias quanto eu. Tanzanianos não gostam de Magoma e não desejam estar aqui, especialmente os jovens. Sempre que viajamos e dizemos a qualquer pessoa que vivemos em Magoma ouvimos risadas seguidas de “O que você come?”, “Você bebe a água?”.
Para encontrar jovens magomenses dispostos a lutar por uma Magoma melhor, precisamos primeiro criar condições para que viver em Magoma seja uma opção, não falta de perspectivas. Se conseguirmos mostrar aos jovens de Magoma novos caminhos ou, melhor ainda, lhes mostrar uma forma de encontrá-los por conta própria, talvez tenhamos uma nova realidade dominando o espaço. Espero que essa nova realidade nos traga um pouco de criatividade, certamente ajudaria muito.

Eu vou seguindo minha vida e procurando minha estrela cadente para fazer meu pedido: desejo que as pessoas de Magoma descubram que existem estrelas cadentes nesse lindo céu negro e comecem a fazer pedidos e correr atrás de seus sonhos. Como eu estou correndo atrás do meu.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

33 anos e Mazinde Juu

Há cerca de uma semana celebrei meu aniversário em Magoma, primeiro celebrado na África.
Viajamos para Lushoto, uma vila no alto das Montanhas Usambara, para coletar informações sobre mercado.
Foi uma viagem de cerca de 3 horas que me permitiu passar meu aniversário em um dos meus lugares favoritos: a estrada.
Chegamos a Lushoto depois de subir uma longa serra, paisagem deslumbrante. Já era noite, nos acomodamos em um hostel excelente, que nos proporcionou o primeiro banho com água quente em dois meses. Mais do que isso, comemos no restaurante do hotel, pizza e sopa, ambas com direito a queijo! Sei que não é fácil entender a felicidade nesta afirmação, mas queijo é uma das comidas que mais sinto falta, simplesmente não existe na Tanzânia.
O jantar foi super agradável, faz frio em Lushoto e por se tratar de uma região com boa infra-instrutora e base da colonização alemã, havia outros wazungu na cidade. As pessoas vão até lá para fazer trilhas e curtir a linda paisagem.
Depois do jantar ficamos todos juntos, equipes de Magoma e Lutindi e Jenny representando a equipe de Korogwe. Ganhei uma linda khanga azul e cartinhas doces dos meus amigos. Confesso que senti falta dos meus amigos brasileiros na celebração, mas meus amigos norte-americanos tornaram a noite adorável.

Há uma organização em Lushoto chamada Usambara Lishe Trust fazendo um ótimo trabalho em organização de agricultores, busca de novos mercados, soluções para transporte de bens e treinamento. Foi uma das reuniões que planejamos.
Eu trouxe um Lonely Planet Tanzania comigo, como sempre faço quando viajo por conter as melhores dicas juntamente com orientações e informações culturais e históricas. Nunca imaginei que além de companheiro de viagem, meu Lonely Planet seria bom para o projeto que estou montando.
Folheando as páginas para pesquisar acomodação em Lushoto encontrei um box sobre uma escola, chamada St. Mary´s Secondary School, em uma pequena vila chamada Mazinde Juu. Quando saímos da reunião na Usambara Lishe Trust nos dirigimos para lá (parte da hospitalidade tanzaniana, comentamos na reunião nosso desejo de conhecer a escola e todos se reviraram para encontrar uma forma de nos proporcionar a visita).

Father Damien é um norte-americano que vive na Tanzânia há 50 anos, 30 dedicados à Mazinde Juu. Ele é um monge beneditino e fundador da escola. A escola secundária só recebe garotas e surgiu da necessidade de proporcionar oportunidades para mulheres. Pouquíssimas pessoas na Tanzânia chegam à educação secundária (ensino médio), a porcentagem de mulheres é ínfima.
Mazinde Juu é hoje uma das melhores escolas da Tanzânia e as pessoas concorrem pelas vagas. 50% das vagas são reservadas às meninas da comunidade em que a escola está instalada e são oferecidas bolsas para meninas que não podem pagar.
O lugar é incrível! Apaixonei-me imediatamente pelo sorriso das meninas, felizes por viver ali (é um internato), pela personalidade do ambiente com entradas diferentes para cada prédio e especialmente pela sustentabilidade presente em cada centímetro.
Toda a estrutura é pensada para aproveitar os recursos da melhor forma possível, de aquecimento solar a reaproveitamento de água. A água vem das montanhas e passa por quatro tanques com filtragem natural. A escola também produz 80% da comida usada para alimentar as meninas.
O highlight da visita foi quando entramos em uma sala de aula e Father Damien sugeriu que as meninas cantassem para nós. Em 10 segundos estavam todas fazendo percussão com todos os materiais disponíveis e cantando lindamente. Father Damien começou a dançar com elas (desengonçado como um bom gringo) até sermos advertidos pelo professor da sala ao lado, rindo, que estava em prova.
Tivemos diversas outras reuniões em Lushoto e uma pequena caminhada antes de ir embora. Não deu tempo de chegar ao mirante, mas tive a oportunidade de ver uma linda paisagem. Meu mundo se abriu e meu coração se encantou com Mazinde Juu.

Ramadan

Ramadan é uma celebração com o qual nunca tive qualquer intimidade, mas que tem feito parte da minha vida nas últimas semanas.
Para quem não conhece Ramadan, durante um mês os muçulmanos jejuam durante o dia e só comem ou bebem a partir das 18h30. Trata-se do nono mês do calendário muçulmano, quando Deus iniciou a revelação do Alcorão ao Seu Mensageiro. É um feriado Feitiço de Áquila (alguém se lembra do filme?), o mundo muda a partir do momento que o sol se põe.

Nosso primeiro jantar de Ramadan foi engraçado, Kristina sugeriu que jejuássemos durante o dia pra entrar no clima. Eu, logicamente, topei. Era um domingo e acordei super cedinho pra ir ao mercado e analisar a dinâmica da montagem. Os mercados são feiras de rua, só que com todos os produtos espalhados pelo chão. No mercado de Magoma é possível encontrar frutas, legumes, grãos, ovos, roupas, panelas, sapatos e algumas senhoras vendendo mandazi (uma espécie de bolinho de chuva sem canela).
Minha curiosidade era saber como a distribuição do espaço acontece. As pessoas chegam a pé de outras vilas com cestos na cabeça, de ônibus, pau-de-arara, bicicleta... Tem gente vindo de todos os lados e cada um senta em um canto. Inicialmente todos me disseram que não há lugar fixo. Cada vendedor paga uma pequena taxa, que varia com os produtos que estão sendo vendidos.

Naquele domingo eu acordei cedinho e me enrolei nas khangas, uma na cintura e a outra cobrindo a cabeça. Não comi nada, como combinado com Kristina, e fui ao mercado (na rua principal que também é a estrada). Sentei num cantinho quieta, enrolada nos panos, para tentar passar despercebida. Foi divertido e consegui ser muito mais discreta do que normalmente ocorre, ouvi apenas dois ou três “mzungu” e vi algumas poucas pessoas me encarando curiosas.
O tempo foi passando a nada de a Kristina aparecer. Meu tempo camuflada já havia respondido algumas das minhas perguntas e chegou o momento de fazer compras, já que domingo é quando compramos a comida da semana. Liguei para Kristina e quando perguntei onde ela estava ouvi “estou aqui comendo mingau” :S
Foi hilário porque ela deu a idéia do jejum, acordou horas mais tarde que eu, mas não conseguiu ficar sem comer (devia ter imaginado, norte-americanos comem o tempo todo).

Eu segui firme e forte no meu jejum, mas bebendo água. Na verdade eu não sabia que água não era permitida. De qualquer forma não acho que conseguiria passar o dia inteiro sem beber água...

O jantar de Ramadan compensa cada minuto do jejum. São diversos pratos diferentes, suco gelado (não temos geladeira aqui, lembram?), chá e mingau. Os pratos são espalhados sobre uma esteira grande e mulheres e crianças sentam ao redor, todos no chão. Há uma espécie de espaço central no meio da casa, aberto para o céu como um quintal, e é ali que comemos. Os homens comem em uma sala, menor, também sobre um tapete e no chão. Todos comem com as mãos.
A família é grande e pessoas surgem de todos os cantos a cada minuto. Até mesmo Salma, sobrinha-neta de Mzee Malingumu (nosso anfitrião), tem que pensar para nos explicar o parentesco de todas as pessoas que conhecemos.

A variedade de pratos é significativa, assim como a quantidade de comida. Durante todo o Ramadan as pessoas que não têm condições de comprar comida vão às casas de outros muçulmanos em melhores condições e recebem comida.
As cores e sabores são ricos, mulheres envoltas em panos coloridos, todos os tipos de carboidratos disponíveis em Magoma (mandioca, batata, arroz, batata-doce, banana) e alguma carne em pequenas quantidades.
Em um desses jantares, Kristina se serviu de uma porção de banana cozida e havia alguma coisa escura, parecida com um cogumelo. Ela comeu sem pestanejar para depois descobrir que se tratava de estômago de boi.
Para amigos, como nós, são oferecidas tâmaras com café. Às vezes tenho ainda mais sorte e passamos na casa da frente ao final do jantar, onde ganhamos kashata, minha iguaria favorita, a paçoca tanzaniana.