terça-feira, 31 de agosto de 2010

33 anos e Mazinde Juu

Há cerca de uma semana celebrei meu aniversário em Magoma, primeiro celebrado na África.
Viajamos para Lushoto, uma vila no alto das Montanhas Usambara, para coletar informações sobre mercado.
Foi uma viagem de cerca de 3 horas que me permitiu passar meu aniversário em um dos meus lugares favoritos: a estrada.
Chegamos a Lushoto depois de subir uma longa serra, paisagem deslumbrante. Já era noite, nos acomodamos em um hostel excelente, que nos proporcionou o primeiro banho com água quente em dois meses. Mais do que isso, comemos no restaurante do hotel, pizza e sopa, ambas com direito a queijo! Sei que não é fácil entender a felicidade nesta afirmação, mas queijo é uma das comidas que mais sinto falta, simplesmente não existe na Tanzânia.
O jantar foi super agradável, faz frio em Lushoto e por se tratar de uma região com boa infra-instrutora e base da colonização alemã, havia outros wazungu na cidade. As pessoas vão até lá para fazer trilhas e curtir a linda paisagem.
Depois do jantar ficamos todos juntos, equipes de Magoma e Lutindi e Jenny representando a equipe de Korogwe. Ganhei uma linda khanga azul e cartinhas doces dos meus amigos. Confesso que senti falta dos meus amigos brasileiros na celebração, mas meus amigos norte-americanos tornaram a noite adorável.

Há uma organização em Lushoto chamada Usambara Lishe Trust fazendo um ótimo trabalho em organização de agricultores, busca de novos mercados, soluções para transporte de bens e treinamento. Foi uma das reuniões que planejamos.
Eu trouxe um Lonely Planet Tanzania comigo, como sempre faço quando viajo por conter as melhores dicas juntamente com orientações e informações culturais e históricas. Nunca imaginei que além de companheiro de viagem, meu Lonely Planet seria bom para o projeto que estou montando.
Folheando as páginas para pesquisar acomodação em Lushoto encontrei um box sobre uma escola, chamada St. Mary´s Secondary School, em uma pequena vila chamada Mazinde Juu. Quando saímos da reunião na Usambara Lishe Trust nos dirigimos para lá (parte da hospitalidade tanzaniana, comentamos na reunião nosso desejo de conhecer a escola e todos se reviraram para encontrar uma forma de nos proporcionar a visita).

Father Damien é um norte-americano que vive na Tanzânia há 50 anos, 30 dedicados à Mazinde Juu. Ele é um monge beneditino e fundador da escola. A escola secundária só recebe garotas e surgiu da necessidade de proporcionar oportunidades para mulheres. Pouquíssimas pessoas na Tanzânia chegam à educação secundária (ensino médio), a porcentagem de mulheres é ínfima.
Mazinde Juu é hoje uma das melhores escolas da Tanzânia e as pessoas concorrem pelas vagas. 50% das vagas são reservadas às meninas da comunidade em que a escola está instalada e são oferecidas bolsas para meninas que não podem pagar.
O lugar é incrível! Apaixonei-me imediatamente pelo sorriso das meninas, felizes por viver ali (é um internato), pela personalidade do ambiente com entradas diferentes para cada prédio e especialmente pela sustentabilidade presente em cada centímetro.
Toda a estrutura é pensada para aproveitar os recursos da melhor forma possível, de aquecimento solar a reaproveitamento de água. A água vem das montanhas e passa por quatro tanques com filtragem natural. A escola também produz 80% da comida usada para alimentar as meninas.
O highlight da visita foi quando entramos em uma sala de aula e Father Damien sugeriu que as meninas cantassem para nós. Em 10 segundos estavam todas fazendo percussão com todos os materiais disponíveis e cantando lindamente. Father Damien começou a dançar com elas (desengonçado como um bom gringo) até sermos advertidos pelo professor da sala ao lado, rindo, que estava em prova.
Tivemos diversas outras reuniões em Lushoto e uma pequena caminhada antes de ir embora. Não deu tempo de chegar ao mirante, mas tive a oportunidade de ver uma linda paisagem. Meu mundo se abriu e meu coração se encantou com Mazinde Juu.

Ramadan

Ramadan é uma celebração com o qual nunca tive qualquer intimidade, mas que tem feito parte da minha vida nas últimas semanas.
Para quem não conhece Ramadan, durante um mês os muçulmanos jejuam durante o dia e só comem ou bebem a partir das 18h30. Trata-se do nono mês do calendário muçulmano, quando Deus iniciou a revelação do Alcorão ao Seu Mensageiro. É um feriado Feitiço de Áquila (alguém se lembra do filme?), o mundo muda a partir do momento que o sol se põe.

Nosso primeiro jantar de Ramadan foi engraçado, Kristina sugeriu que jejuássemos durante o dia pra entrar no clima. Eu, logicamente, topei. Era um domingo e acordei super cedinho pra ir ao mercado e analisar a dinâmica da montagem. Os mercados são feiras de rua, só que com todos os produtos espalhados pelo chão. No mercado de Magoma é possível encontrar frutas, legumes, grãos, ovos, roupas, panelas, sapatos e algumas senhoras vendendo mandazi (uma espécie de bolinho de chuva sem canela).
Minha curiosidade era saber como a distribuição do espaço acontece. As pessoas chegam a pé de outras vilas com cestos na cabeça, de ônibus, pau-de-arara, bicicleta... Tem gente vindo de todos os lados e cada um senta em um canto. Inicialmente todos me disseram que não há lugar fixo. Cada vendedor paga uma pequena taxa, que varia com os produtos que estão sendo vendidos.

Naquele domingo eu acordei cedinho e me enrolei nas khangas, uma na cintura e a outra cobrindo a cabeça. Não comi nada, como combinado com Kristina, e fui ao mercado (na rua principal que também é a estrada). Sentei num cantinho quieta, enrolada nos panos, para tentar passar despercebida. Foi divertido e consegui ser muito mais discreta do que normalmente ocorre, ouvi apenas dois ou três “mzungu” e vi algumas poucas pessoas me encarando curiosas.
O tempo foi passando a nada de a Kristina aparecer. Meu tempo camuflada já havia respondido algumas das minhas perguntas e chegou o momento de fazer compras, já que domingo é quando compramos a comida da semana. Liguei para Kristina e quando perguntei onde ela estava ouvi “estou aqui comendo mingau” :S
Foi hilário porque ela deu a idéia do jejum, acordou horas mais tarde que eu, mas não conseguiu ficar sem comer (devia ter imaginado, norte-americanos comem o tempo todo).

Eu segui firme e forte no meu jejum, mas bebendo água. Na verdade eu não sabia que água não era permitida. De qualquer forma não acho que conseguiria passar o dia inteiro sem beber água...

O jantar de Ramadan compensa cada minuto do jejum. São diversos pratos diferentes, suco gelado (não temos geladeira aqui, lembram?), chá e mingau. Os pratos são espalhados sobre uma esteira grande e mulheres e crianças sentam ao redor, todos no chão. Há uma espécie de espaço central no meio da casa, aberto para o céu como um quintal, e é ali que comemos. Os homens comem em uma sala, menor, também sobre um tapete e no chão. Todos comem com as mãos.
A família é grande e pessoas surgem de todos os cantos a cada minuto. Até mesmo Salma, sobrinha-neta de Mzee Malingumu (nosso anfitrião), tem que pensar para nos explicar o parentesco de todas as pessoas que conhecemos.

A variedade de pratos é significativa, assim como a quantidade de comida. Durante todo o Ramadan as pessoas que não têm condições de comprar comida vão às casas de outros muçulmanos em melhores condições e recebem comida.
As cores e sabores são ricos, mulheres envoltas em panos coloridos, todos os tipos de carboidratos disponíveis em Magoma (mandioca, batata, arroz, batata-doce, banana) e alguma carne em pequenas quantidades.
Em um desses jantares, Kristina se serviu de uma porção de banana cozida e havia alguma coisa escura, parecida com um cogumelo. Ela comeu sem pestanejar para depois descobrir que se tratava de estômago de boi.
Para amigos, como nós, são oferecidas tâmaras com café. Às vezes tenho ainda mais sorte e passamos na casa da frente ao final do jantar, onde ganhamos kashata, minha iguaria favorita, a paçoca tanzaniana.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Spanglish Magoma

OK, preciso descrever essa situação pra vocês. Hoje fomos pra Korogwe no ônibus das 7h00. Korogwe fica a cerca de 36 km de Magoma mas a viagem dura no mínimo 2 horas, (normalmente 2h15, às vezes 2h30) já que o ônibus é velho, a estrada é de terra e há gente subindo e descendo a cada 10m.
Trocamos infos com as equipes de Korogwe e Lutindi, compramos suprimentos e visitamos uma escola que tem um programa de alimentação de alunos (internato de meninas) pra ver como as coisas funcionam.
Como a equipe de Lutindi tem um casamento amanhã cedo – em Magoma ninguém casa, só tem funerais :( – e Sam foi ao médico, em Dar, com Yakub, decidimos economizar $ e voltar pra Magoma no mesmo dia.
Quando chegamos, no último ônibus, estava anoitecendo (o ônibus deveria sair de Korogwe às 16h00, mas como ainda não estava lotado – lotado significa bem lotado – saiu às 17h00).
A Kristina estava acabada, ela não funciona de manhã e acordar tão cedo acaba com ela (eu sempre acordo mais cedo pra tomar meu banho gelado de canequinha rsrs). A viagem em si também é bem cansativa, chacoalha demais, sempre muita coisa acontecendo.
Cheguei, chequei os emails (comentando com uma amiga que somos observadas o tempo todo) e resolvi tomar um banho. Estamos no meio do Ramadã e por isso (acho) eu estava na canequinha quando uma molecada surgiu tocando panelas e cantando alguma coisa na porta (queria ter visto!).
Terminei o banho, coloquei meu pijaminha e fui fritar um ovo (proteína da semana). A frigideira não ajuda, mas eu estava sonhando com aquele ovo. Cortei dois tomates, ia cortar um pepino (acabei esquecendo) e fui buscar duas fatias de pão pra fazer torradas na frigideira (compramos o pão em Korogwe, aqui não tem pão). De repente escuto “Hodi” (permissão para entrar) e quando viro, minhas fatias de pão esmigalhando com o susto, vejo a vizinha do lado, que veio falar com Maria. Ela entra, olha meu pão, fala com Maria, olha minha frigideira e vai embora.
Pão semi-tostado, ovo e tomates no prato, com um pouquinho de molho de pimenta. Sentei no sofá. Ainda pensei “será que é melhor ir comer no quarto?”. Lição a ser aprendida: escute a sua intuição.

Aqui entra um adendo, vocês assistiram Spanglish, um filme super doce com Adam Sandler? Tem uma cena em que o Adam Sandler está fazendo um sanduíche, ele é chefe de cozinha, e tem todo um capricho na gema do ovo escorrendo sobre pão, a distribuição dos ingredientes... Quando ele vai dar a primeira mordida no sanduba surge a Paz Vega enfurecida porque a esposa dele tinha levado a filha dela pra cidade sem permissão. Lá se foi o momentum do sanduíche.
Qualquer semelhança...

Eu estava ali, arranjando meus ingredientes pelo prato e me ajeitando pra saborear minha versão simplificada do sanduíche do Adam Sandler. Primeiro pedaço na boca e escuto “Hodi” com passinhos. Lá vem a vizinha da frente com as duas irmãs. Ela tem 16 anos e as irmãs devem ter 12 e 10 mais ou menos. Todos os dias passam aqui curiosas com as mzungu, trazem ugali (espécie de mingau de farinha de milho com água) ou alguma outra coisa para Maria.
Viram-me na sala (tarde demais) e vieram correndo falar comigo, eu com a boca cheia e elas quase dentro do meu prato curiosas. Eu mastigando meu pedacinho despedaçado de pão e elas perguntando “Una penda nyanya?” (você gosta de tomate?). Confesso que se meu Swahili fosse melhor eu teria dito “não, estou comendo porque detesto” rsrs.
Foram para o quarto da Maria e a porta do meu quarto, que é no caminho, estava aberta. Quem me conhece sabe que nunca deixo as luzes acesas, mas claro que hoje, lei de Murphy, a luz do quarto estava acesa. Eu comendo meu pão com ovo toda torta e vendo as meninas entrando curiosas pra ver o quarto.

Mais um adendo: tento deixar o quarto preservado porque é meu único cantinho de privacidade. Além de ter minhas coisas lá dentro, tem um pouquinho de quem eu sou, lembranças que meus amigos me deram antes de eu viajar, computador, ipod e minha “ukuta Kiswahili”, parede cheia de post-its com palavras que estou tentando memorizar.
É lógico que qualquer criança vendo isso fica curiosa e quer entrar pra ver. O problema aqui é que de uma criança vendo pra 40 crianças vendo é uma questão de minutos.

Voltando novamente a Magoma, todas saíram do quarto da Maria e após mais um desvio pelo meu quarto voltaram para a sala, onde eu ainda estava tentando juntar pedaços do meu sanduba. Falaram mais um pouco comigo, mas eu não estava entendendo nada (não sei se por falta de Swahili, cansaço ou porque meu estômago estava bloqueando a capacidade de entendimento do meu cérebro).
Diante disso elas desistiram da comunicação e disseram “Baaday” (até logo).

Voltei pro meu sanduíche, mais migalhas que qualquer outra coisa a este ponto. Juntei algumas das migalhas, comi e levantei, ainda mastigando, pra pegar um guardanapo e ir lavar a louça.
“Hodi” e mais passos – quase me escondi debaixo da mesa. Agora era nosso vizinho, querendo também falar com Maria, mas já que eu estava lá tão disponível por que não falar comigo também?

Último adendo: aqui você não sai na rua vestindo menos que uma saia abaixo do joelho e blusas bem fechadas, de preferência sobrepostas por uma khanga (aqueles panos coloridos que quase toda foto de tanzanianas tem).
Eu estava de pijamas, calças arregaçadas pra não molhar as barras (temos um vazamento na cozinha que só surge à noite), óculos e cabelo enrolado no alto da cabeça (ainda bem que tirei as meias de dedinhos por causa do vazamento).

Tentei lavar a louça no escuro para que o vizinho não me visse assim, mas ele foi gentil e acendeu a luz. Conversou por 3 minutos com a Maria e voltou a tempo de jogar um pouquinho de papo fora comigo, super simpático, querendo até aprender português. Eu na pia querendo jogar a frigideira na cabeça dele :S

Quando finalmente ele se foi, eu terminei a louça. Fui imediatamente para meu quarto (tropeçando antes na Maria que resolveu limpar o corredor no meio da noite) e aqui estou, exausta, depois de um pão com ovo e tomate. E com medo de botar os pezinhos pra fora do quarto para escovar os dentes e dar de cara com toda a vizinhança me esperando atrás da porta.

sábado, 14 de agosto de 2010

Nane Nane

Neste fim de semana fomos para Nane Nane, feira de agricultura que acontece todos os anos aqui na Tanzânia (nane nane significa 8/8, referência à data de encerramento da feira).
A feira acontece em diversas cidades, Arusha, Dodoma e Morogoro.
Eu e Kristina fomos para Dodoma, capital do país que tem história parecida com Brasília, foi construída no meio do território, em um lugar super seco e sem estrutura. Com isso, nem mesmo o presidente vive na capital, ainda que o Parlamento seja em Dodoma.
A sensação é de que Dodoma é uma cidade pequena, com um pouco mais de estrutura. Ficamos em um lodge bem simples e barato, com banheiros no corredor. Os banhos, como aqui em Magoma, são de canequinha, a não ser que você vá tomar banho na hora do abastecimento de água, às 6h00, quando todas as torneiras funcionam e todos os recipientes são cheios para todo o dia (o que funcionou para mim no primeiro dia).

A Nane Nane é uma mistura de barracas de comida, roupas e expositores de agricultura. Nosso plano era ir para a feira 2 dias, mas conseguimos cobrir toda a área no sábado. Passamos todo o dia na feira conversando com os expositores e buscando oportunidades.

Na volta para Dodoma (o pavilhão é uma área descampada a 5km de Dodoma) o pneu da dala-dala (espécie de lotação) furou. Com isso fomos deixados na estrada e as outras dala-dalas sempre passam lotadas (lotação aqui é uma palavra muito bem usada). Por duas vezes surgiu uma dala-dala com algum espaço disponível, mas deixamos que as mamas com filhos pequenos tivessem prioridade.
Fomos caminhando pela estrada, eu, Kristina e 4 masai que conhecemos. Aqui entra meu preconceito bobo. Os masai são a tribo tanzaniana que vive basicamente de cabras. Eles comem a carne e bebem o leite e o sangue das cabras. São todos altos e bem magros, vestem roupas típicas que se parecem com um vestido, têm uma espécie de cajado de madeira na cintura e falam Kimasai. São conhecidos por ser uma sociedade bastante machista.
Os 4 masai que conhecemos foram muito doces. Quando finalmente conseguimos nos espremer em uma dala-dala, eles pagaram o transporte pra gente. Aprendi algumas palavras em Kimasai e pratiquei meu Kiswahili, que está um pouco melhor.
Levaram-nos para conhecer seu escritório, onde fazem remédios medicinais. No caminho ganhei uvas, compradas por Jakobo. Não comia uvas há muito tempo, deliciosas, cultivadas perto de Dodoma.
Confesso que foi hilário ver as pessoas rindo a apontando “masai na mzungu” (masai e estrangeiras – leia-se brancas).

A noite em Dodoma fechou com chave de ouro quando fizemos uma pequena happy-hour para relaxar e ganhamos o jantar, comida indiana vegetariana pra mim, de uma dupla que conhecemos na lanchonete. Ishmael conhecia o pai de Yakub, nosso parceiro tanzaniano, por coincidência. Encomendou comida para a primeira brasileira que conheceu em um hotel da cidade e levaram os pratos para nós na lanchonete. Comemos muito bem, a comida estava deliciosa e caprichada na pimenta.

Dodoma deixou muito boas lembranças.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Uma mzungu brasileira

Estou chegando à conclusão que realmente tem alguma coisa comigo. Semana passada fomos com o pessoal da ADP, organização que atua em Magoma há 10 anos, coletar informações em uma vila chamada Kijungumoto. Eles estão trabalhando no relatório anual e vão até algumas das vilas em que atuam para coletar informações e um desenho para enviar aos patrocinadores alemães (cada criança tem um patrocinador alemão que doa uma quantia mensal para cuidar de suas despesas).
Havia cerca de 6 pessoas fazendo exatamente a mesma coisa, uma ao lado da outra pedindo para as crianças desenharem em dois papéis. E eu era a única com cerca de 15 crianças me cercando durante o trabalho.
No dia seguinte, o mesmo se repetiu em Mashewa, outra vila.

Acho que, de alguma forma, as crianças sabem que sou louca por elas. E tem alguma coisa com os cachos também, elas estão sempre querendo tocar nos cachos, o que me surpreende porque a Kristina é loira e tem cabelos lisos, achei que as pessoas se encantariam mais com os cabelos dela.
Muita gente aqui tem cabelos raspados, todas as crianças com certeza. As mulheres adultas usam perucas, rasta ou cabelos curtos trançados junto à cabeça.
A Maria, que mora conosco, diz que eles dizem que tenho cabelos de anjo. Quem diria que minha cabeleira bagunçada seria cabelo de anjo algum dia...

domingo, 1 de agosto de 2010

Colheita de milho, leite e happy-hour

Passamos o fim de semana em Korogwe, excelente pra renovar as energias e compartilhar informações com todo o grupo. Em nossas reuniões; Magoma, Lutindi e Korogwe reunidos; colocamos nossos desafios e nossas perspectivas para que todos possam contribuir com idéias para todos os projetos.
Além do aspecto profissional, encontrar os amigos faz uma grande diferença. Comemoramos o aniversário da Alex (Lutindi) na sexta e tivemos um jantar de despedida para o Jesse (Korogwe), que está voltando para os EUA, no sábado. Todo mundo estava lá, inclusive os parceiros tanzanianos. É um fervilhar de informações, idéias e carinho que nos enche de energia pra continuar batalhando.
E a happy-hour que reuniu Magoma e Lutindi foi fantástica. Conversamos sobre os highlights e downlights e aproveitamos para estreitar nossos relacionamentos. Normalmente não temos oportunidade de sentar e relaxar em nossas cidades, todos estão sempre nos olhando e analisando, curiosos.

Na quinta fomos colher milho para ajudar alguns amigos. E foi super divertido ver Kristina toda animada usando camiseta e chinelos. Eu, obviamente, a convenci a colocar uma blusa de manga comprida e ir mais protegida. Na segunda carreira de milho ela percebeu por que...
Colher milho é divertido, parece com abrir ovos de páscoa: você nunca sabe qual a surpresa que encontrará. Só que quando se fala em agricultura de subsistência, sem qualquer maquinário ou investimento, é bom lembrar que quase todas as espigas são pequenas, algumas foram comidas por insetos e, principalmente, há muito mato rodeando a plantação. Isso faz o trabalho muito mais cansativo – adicione o sol de uma região seca e quente na cabeça.
Pra ajudar tem uma técnica de agricultura chamada intercrop, que queremos incentivar aqui inclusive. Basicamente consiste em intercalar dois tipos de semente, uma fileira de uma cultura, uma fileira de outra. Isso garante mais nutrientes no solo e maior produtividade.
Bom, o milho que fomos colher estava intercalado com sisal. Quem não conhece sisal imagine um porco-espinho sem as pernas com folhas apontando para todos os lados e espinhos bem afiados nas pontas. Nem preciso dizer que é bem doloroso esquecer este pontiagudo detalhe para alcançar a espiga de milho e ser lembrada pelo espinho te furando a panturrilha...

Um dos meus dilemas aqui, completamente inesperado, tem sido no relacionamento com as crianças. Na quarta tivemos um evento político, 17 candidatos do partido CCM se apresentando para a população (as eleições serão em outubro). Tinha bandeira, música, um pequeno palanque e pessoas etiquetando propaganda nas crianças – qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência.
Nós estávamos sentadas assistindo e de repente eu tinha cerca de 15 crianças me rodeando. Meio sem querer começamos um jogo, eu desenhando e elas me ensinando o nome em Swahili para meu desenho. Foi delicioso, fiquei com um dicionário ilustrado. Mas o ponto que nos deixa apreensivas é que os adultos não brincam com as crianças aqui. E não podemos perder o respeito dos adultos, ainda que amemos, eu principalmente, interagir com as crianças.
Um bom exemplo do que estou descrevendo foi quando Kristina e eu decidimos jogar futebol com alguns moleques. Uma platéia de cerca de 20 crianças se formou em poucos minutos para assistir a gente jogar, incluindo os meninos que estavam jogando no campinho e abandonaram o jogo: vale lembrar que apesar de ser brasileira eu nunca fui muito boa no futebol...
Quando levo minhas bolinhas de sabão para brincar com os pequenos acontece o mesmo. A quantidade de crianças cresce sem parar e começo a me preocupar com a segurança de todas elas, pulando para estourar as bolinhas...
Em resumo, mzungu + crianças = caos e paraíso.

Tenho cozinhado bastante, nem sempre com muita facilidade já que temos uma única boca de fogareiro movida a querosene. Convidamos um amigo que trabalha na ADP-Magoma (organização que atua na região) para jantar: panquecas, receita da vó.
Precisava de leite e rodei com Maria pelas 5 casas que têm vacas para tentar comprar 1 litro, sem nenhum sucesso. Tentamos leite em pó, que também não existe em Magoma, e partimos para panquecas com água. Isso no meio do apagão de 2 dias ocasionado pelo roubo dos cabos. Confesso que eu estava exausta depois do jantar, mas as panquecas de berinjela e banana ficaram muito boas, minha avó ficaria orgulhosa. E sobremesa é uma coisa que não existe aqui, ninguém sequer entende o conceito.

Momento engraçado: no dia seguinte pela manhã, Mzee (senhor) Francis nos trouxe leite, que ele comprou do seu vizinho. E logo em seguida surgiu um homem à nossa porta com leite para vender, pois disseram que duas wazungus (plural de mzungus) estavam procurando leite.
Como vocês podem ver, nem a busca por leite passa despercebida por aqui.

Baadaye!

Pp. Teoricamente mzungu não significa branco, mas estrangeiro. Mas a verdade é que havia um norte-americano negro aqui conosco por alguns dias, Julian, e em nenhum momento ele foi chamado de mzungu ou despertou o mesmo interesse que nós despertamos. Isso mostra que, ainda que o significado não seja exatamente este, na prática a palavra mzungu é usada para quem é diferente - e ter pele clara significa ser bem diferente. Até mesmo para uma brasileira miscigenada.