segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

2012 e suas pequenas vitórias

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2012 está chegando ao fim, meu terceiro ano na Tanzânia e com isso meu terceiro tudo na Tanzânia: aniversário sem dança (mas este ano teve bolo), Natal sem ceia (mas com pilau, arroz com especiarias, depois de uma missa de 6 horas), Reveillon sem fogos (mas com praia pelo segundo ano seguido), dia dos namorados sem namorado (neste caso sem mas :S), final do campeonato brasileiro sem TV (mas com internet pra saber os resultados), carnaval sem samba (acho que este deve ser ainda mais difícil que o dia dos namorados...).
Eu sei que parece óbvio que se estou há três anos na Tanzânia vivi três vezes o ciclo do ano na Tanzânia, mas pra quem está longe essas coisas acontecem desconectadas e as duas frases que parecem dizer a mesma coisa são sentidas de forma muito diferente.

2012 foi um ano de crescimento, de muita reavaliação, de me posicionar de forma diferente, de viver de forma diferente, de reavaliar parcerias. 2012 foi um ano de correções; para fazer melhor, ser melhor; deixar pra trás coisas que um dia foram muito importantes e correr atrás de outras que ficaram momentaneamente em segundo plano. Foi um ano de novos erros e novos acertos, de reconhecer erros doloridos, realinhar expectativas (work in progress), de buscar.


Acho que desde que vim para a Tanzânia apenas duas coisas jamais mudaram: as saudades que sinto de vocês e o desejo de desencalhar baleias. Assim vou seguindo, e como este trabalho é feito de pequenas vitórias, cada uma delas um pequeno movimento de uma pequena baleia, gostaria de compartilhar algumas pequenas vitórias de 2012 com vocês:

1.    Os alunos de Kijango, segunda escola do projeto Magoma, comeram na escola pela primeira vez em suas vidas, resultado de seu trabalho criando galinhas e produzindo ovos;
2.    Os agricultores de Bombo Majimoto produziram vegetais pela primeira vez e venderam em grandes mercados da Tanzânia;
3.    Os agricultores de Bungu produziram e venderam, juntos, mais de cinco toneladas de vegetais;
4.    Os agricultores de Kijungumoto resistiram juntos à seca e plantaram 845 plantas de jiló em sua primeira produção de vegetais;
5.    Alguns de nossos agricultores de Bungu e Magoma viram o mar pela primeira vez ao lideraram um de nossos meet-ups para outras organizações em Dar es Salaam, uma iniciativa do projeto Masoko;
6.    Os agricultores de Lutindi, também pela primeira vez, coordenaram um calendário para produção coletiva que os permitirá colher consistentemente vegetais de alta qualidade. A expectativa é que nossos parceiros colham mais de 200 toneladas de vegetais em uma única estação;
7.    Shabani (13 anos), um dos mais dedicados estudantes do projeto Magoma, liderou pela primeira vez treinamentos para nossos parceiros de outros projetos, todos adultos, através do projeto Korogwe. O garoto, que acaba de se formar no ensino fundamental, agora diz com um sorriso no rosto que quer ser professor;
8.    Nossos agricultores de Kwakiliga plantaram a mais bela shamba-darasa (fazenda-escola) de mandioca que já vi, cantando e fazendo piada enquanto trabalhavam sob o sol escaldante mesmo estando com os corpos magrinhos depois de três anos de seca;
9.    Como uma organização focada em desenvolvimento de capital humano, tivemos nossa primeira sessão de feedback para os coordenadores de projeto e com ela criamos estrutura para seu crescimento ao longo do ano;
10. Talvez nosso maior sucesso, presente em muitos dos itens acima,; coordenamos uma transição eficiente entre grupos de coordenadores de projeto (cada grupo fica na Tanzânia por aproximadamente um ano), o que permitiu que os novos coordenadores de projeto se adaptassem a seus postos sem que perdêssemos momentum com nossos parceiros.


Logicamente que todas essas pequenas vitórias são apenas um começo, mas justamente por isso, por serem um começo, é que são tão importantes.

Que 2013 nos permita mais começos e mais meios!
Feliz Natal e um 2013 de oportunidades para todos :)

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Sorrisos que alimentam a alma

Mzee Mcharo peparando sementes de mandioca
 


Raimondi preparando sementes de mandioca

Mama Halima preparando sementes de mandioca


A mandioca à espera da chuva

Plantando
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Kwakiliga é uma de nossas vilas na planície (tecnicamente uma sub-vila), com cerca de 1000 habitantes. Estabelecida em uma área muito seca e sem acesso a água, eu muitas vezes me pergunto o que levou nossos parceiros em Kwakiliga a viverem ali. A resposta correta para esta pergunta é, provavelmente, disponibilidade de terras em um país em que cada pedacinho de solo é plantado para subsistência. Minha resposta poética para esta pergunta paira no que me encanta em Kwakiliga: sua paisagem de tirar o fôlego, com céu sempre azul e solo vermelho; o mais belo pôr-do-sol da Tanzânia; o vento forte que bate incessantemente; o Mkwajo, árvore de copa grande e frutos amargos que marca o centro da vila e por último, mas não menos importante, o sorriso contagiante dos habitantes de Kwakiliga que jamais perdem uma oportunidade para se divertir e sobrevivem à fome se alimentando de alegria.

Este ano não temos coordenadores de projeto em Kwakiliga pois dois dos candidatos selecionados desistiram de vir à Tanzânia e por ser a o projeto mais próximo a Korogwe (14km) e por sua longa estória com a 2Seeds, Kwakiliga se tornou responsabilidade minha e do Sam (o outro diretor de desenvolvimento de projetos). Nossos corações batem forte com a responsabilidade e nós temos um desejo visceral, uma necessidade mesmo, de levar o projeto em Kwakiliga adiante e encontrar formas de criar oportunidades para esta comunidade que encarou tantos insucessos. 

 
Hoje passei o fim da tarde em Kwakiliga, plantando mandioca com nossos parceiros. Mandioca será, provavelmente, nossa última tentativa de cultivo já que se a chuva não for suficiente para que a mandioca floresça não será suficiente para mais nada. Nós arriscamos ao comprar as sementes após um único dia de chuva, o único em muito tempo, e nossos parceiros estão trabalhando muito para que as plantas sobrevivam já que o período de fome em Kwakiliga tem sido mais intenso a cada ano.
O momento mais forte do dia foi a alegria com que nossos parceiros trabalharam na shamba, com seus corpos muito magros e sorrisos largos, cantando, fazendo piada (o que me proporcionou um candidato a marido, é claro) e incentivando uns aos outros.


O desafio é que não importa o volume de esforço que colocamos na nossa shamba, se a chuva não vier não teremos o que comer e esta falta de controle sobre o processo, a relação falha entre causa e consequência, é muito dolorosa para mim.

Para resolver esta questão estamos iniciando a construção de galinheiros e temos uma nova iniciativa, focada em segurança financeira, que é a produção de ovos.


Contarei mais detalhes sobre nossas aventuras no mundo das galinhas muito em breve, mas por agora peço que todos cruzem seus dedos e soprem as nuvens em nossa direção. A mandioca precisa de chuva para sobreviver e ter esta segurança crescendo no solo significa muito para nossos fortes parceiros. Eles acreditam que a chuva está vindo; eu também (tenho que acreditar), e não há um único segundo do dia em que eu não busque sinais no sentido do vento ou no barulho fora da janela que indiquem que estamos certos.

Que venha a chuva, porque não consigo pensar em um lugar do mundo que precise (ou mereça) mais se deliciar com as gotas que caem do céu!

sábado, 3 de novembro de 2012

Chuva que encharca as lágrimas

Já é quase 1h00 da manhã aqui na Tanzânia e estou no escuro do meu quarto escrevendo este post ao som misturado de música brasileira e chuva. Usiku, minha cachorra, está dormindo na cama dela, aos pés da minha.

Faz tempo que não chove em Korogwe. Faz tempo que não chove nas vilas. Faz tempo que o milho morreu seco e até onde os olhos enxergam só se vê árvores retorcidas e seca no vale e na planície. Hoje está chovendo e eu sempre acreditei que a chuva traz mudança, que a chuva movimenta, faz a vida girar e mexe as peças do lugar.

Ontem choveu muito no vale e meu telefone recebeu mensagens e mais mensagens de coordenadores de projeto felizes, dançando na chuva. O calor era muito, ignorava a sola dos sapatos e queimava nossos pés sem piedade. Ao ver a chuva, os coordenadores enviaram mensagens uns aos outros, como que para checar se a chuva não era apenas uma alucinação, mas ao perceber que não estavam loucos se permitiram curtir como crianças as gotas pesadas que caíam do céu.

Esta tarde tive uma reunião em Kwakiliga, um dos nossos projetos que mais sofrem com a seca (um ano sem chuva e nenhum rio por perto) e a primeira de nossas vilas onde ouvi as pessoas pensando em se mudar para outro lugar; se não para viver, para plantar - a fome que brota em descrença. Com a chuva, vamos, finalmente, plantar mandioca.

Muito do que se passa em Kwakiliga este ano segue modelos brasileiros: nossos parceiros estão ansiosos para aprender a cozinhar mandioca como nós cozinhamos, a fazer biju e tapioca, e também a criar galinhas e plantar de acordo com o sistema PAIS (produção agroecológica integrada sustentável). O desafio será colossal em Kwakiliga, mas temos que sonhar grande e pensar que um dia, como a chuva veio encharcar nossas lágrimas de fome, outros milagres acontecerão.

"Quem é ateu e viu milagres como eu
Sabe que os deuses sem Deus
Não cessam de brotar, nem cansam de esperar"

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Subindo uma montanha para chegar a mim mesma

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Lembro de mim ainda novinha lendo sobre Dian Fossey, a zoologista norte-americana que dedicou 18 anos de sua vida a estudar (e viver com) os gorilas de montanha (e só não dedicou o resto de sua vida a eles por ter sido assassinada aos 53 anos de idade). A realização da existência de Dian Fossey veio acompanhada da descoberta de que havia uma montanha “cheia de gorilas” em um canto do mundo, acessível para mulheres incríveis.

Eu sempre sonhei ser uma desbravadora, dedicar minha vida a explorar o mundo, defender causas, tornar possível o impossível e “viver para” ao invés de “viver de” – e a imagem guardada na minha cabeça, o símbolo de todos os sonhos, era Dian Fossey em meio ao grupo de gorilas.

Terça-feira passada, dia 9 de outubro, eu levantei da cama depois de uma noite em claro contando os minutos para as 5h30 e tentando convencer meu corpo, em vão, a dormir e poupar energia para a longa caminhada que me aguardava. Eu engoli uns pedaços de frutas e ovos (que mal pude digerir de tão ansiosa) e corri para a sede do Parque Nacionaldos Volcanos para descobrir qual família de gorilas seria designada para mim (acabei pegando a família Bwenge). Depois de uma espera que me pareceu tão longa quanto os anos que levei para chegar ali, eu me vi em um carro a caminho do início da trilha e, logo depois, subindo a montanha acompanhada de sete turistas, um guia e um guarda armado responsável por espantar os búfalos do caminho (atirando para o ar, não nos búfalos).
Meu coração pulava com a subida íngreme - ou talvez fosse a emoção de estar no sopé dos Volcanos. Após quase duas horas de trilha, entre terraços cultivados na montanha e floresta tropical, eu finalmente avistei meu primeiro gorila – ou melhor, minha primeira gorila. Um a um, foram surgindo entre as árvores quatro filhotes, um macho silverback e outras quatro fêmeas. Na hora mais curta da minha vida eu fiquei ali, observando cada detalhe, cada ruga, o jeito que as patas se mexem, os olhos vermelhos, a energia sem fim dos filhotes que parecem não se amedrontar com o tamanho e a força de seu pai, o silverback.

Foram muitos os momentos da minha vida em que eu vi a montanha dos gorilas distante e duvidei que um dia eu pisaria nela – minha distância da montanha dos gorilas estava ligada a minha distância de quem eu queria ser. Mas no dia 9 de outubro de 2012 eu subi a montanha que me levou aos gorilas e que me permitiu me aproximar de mim mesma – eu sou causa e consequência de minhas escolhas. Um brinde à família Bwenge!

domingo, 30 de setembro de 2012

O dia em que Shabani sorriu


Faz tempo que não escrevo e tem muita coisa acontecendo aqui na Tanzânia. Muitos posts virão, mas hoje quero começar falando de Magoma.

Minha analogia preferida sobre o Projeto Magoma vem do Sam, o outro diretor de desenvolvimento de projetos: Magoma é como um daqueles motores de caminhão a diesel; você olha e parece uma bagunça, dá a sensação de que não vai pegar, mas quando você vira a chave, o caminhão liga e sai andando; pulando, mas seguindo em frente. E vai longe.

Nas últimas semanas vendemos mais de 300kg de cebolas produzidas pela escola e mais de 200kg de cenouras. As cebolas, de altíssima qualidade, atraíram compradores que pagaram preço justo e fizeram bons negócios. As cenouras tinham qualidade média (aprendemos que a preparação do solo tem que ser mais intensa quando plantamos sementes pequenas), mas também foram todas vendidas.


Na escola em que comecei o projeto em 2010, Kwata, o programa de merenda escolar recomeçou ontem com mingau enriquecido com as pequenas cenouras que restaram na shamba, final de produção que não teria mercado. Após um período sem refeições em que, de certa forma, houve perda no relacionamento com os estudantes, pudemos recomeçar o programa e com isso mostrar aos estudantes o resultado de seu trabalho e de seu aprendizado.
Já em Kijango, a primeira escola para a qual expandimos o projeto em 2011, a merenda escolar começou na terça-feira, quando pela primeira vez em sua história os 525 alunos tiveram a chance de comer mingau na escola. Mingau pago com o dinheiro da venda de ovos do galinheiro da escola.

Assim consolidamos o modelo, agricultura para escolas com acesso a água, criação de animais para escolas que não tem água por perto.


Os momentos de merenda são indescritíveis (veja as fotos acima) e ainda que para muitos seja fácil desmerecer o valor de um copo de mingau, o semblante (e a voz reivindicadora) das crianças desmente o demérito e seus sorrisos validam a refeição simples, resultado direto de seu trabalho. Claro que temos o sonho de que a escola seja capaz de financiar refeições mais nutritivas, mas a educação que enriquece o mingau abre portas para o futuro e ainda que estejamos longe de alcançar o potencial completo do projeto vemos pequenas vitórias que conduzem o caminho.


Nas últimas duas semanas, quatro estudantes de Kwata (Luka, Maimusa, Shabani e Mwanaisha) têm ido facilitar treinamentos em nossas outras comunidades. O treinamento em preparação para o cultivo encanta os expectadores, mas sua maior surpresa e descoberta é, sem dúvida, que crianças podem ensinar adultos e todos somos um pouco professores e um pouco alunos. As reações são diversas, mas nunca falta um “kumbe, walimu wazuri!” (uau, excelentes professores).

Hoje, ao voltar do treinamento em Kwakiliga, acompanhei todos os estudantes a suas casas, para agradecer a seus pais por permitirem que eles me acompanhem aos treinamentos e pelo desprendimento de deixa-los passar todo um dia longe de casa (as crianças trabalham com seus pais quando não estão na escola). Fui recebida com sorrisos e pais orgulhosos parabenizaram seus filhos ao ouvir que fantástico grupo de professores eles formam. Depois de encontrar o pai de Luka no café e visitar as casas de Maimusa, Mwanaisha e Shabani (e ver o garoto orgulhoso dizer na frente da mãe que seu sonho é ser professor), Shabani me acompanhou de volta à rua. Fomos conversando no caminho, o garoto sonhando com seu futuro como professor mesmo sendo fruto de um sistema educacional (muito) deficiente. Shabani esteve envolvido no projeto Magoma desde o início, sempre atento ao que se passa, pronto para fazer as perguntas certas, aprender e opinar. Shabani é um garoto quieto, que raramente sorri e tem o semblante de quem está pensando as questões do mundo, o que coloca rugas em seu rosto de criança.

Hoje eu disse a Shabani que ele receberá um certificado de facilitador de treinamentos e que em alguns anos, quando ele se tornar professor e procurar emprego, ele pode mostrar o certificado como uma prova de que tem capacidade para fazer um grande trabalho. Eu também disse a ele que o recomendarei de onde estiver. O vislumbre de sua carreira de professor me deu o momento mais valioso de meu dia: ao olhar para trás vi um Shabani sorridente, leve como uma criança, que veio me agradecer por ter começado o projeto em Magoma. Aquele sorriso, vindo de um garoto que acaba de se formar na escola primária e por isso está se despedindo do projeto, encheu meus olhos de lágrimas e o coração de calor.

Sempre me pergunto se os estudantes com quem comecei o projeto, que dedicaram seu suor, risos e força a um sonho em que inicialmente não acreditavam, e que se formaram ano passado ou estão se formando este ano, se beneficiaram o suficiente. Não que eu saiba definir o que seria “suficiente”. Hoje vou me permitir pensar que sim, que o sorriso de Shabani representa uma possibilidade de futuro e que em algum lugar de suas mentes e almas esses estudantes agora acreditam que é possível ter uma vida melhor (e que há pessoas que se importam).

Um brinde ao dia que Shabani sorriu!

terça-feira, 8 de maio de 2012

Era uma vez um rato na minha cozinha


Este post necessita de um prefácio para que a seguinte estória faça sentido para aqueles que não me conhecem tão bem: eu sou vegetariana.


Há cerca de três ou quatro noites eu ouvi um barulho suspeito ao entrar em minha cozinha, sacos plásticos sendo revirados em um dos cantos. Imediatamente pensei: rato.

Não sou uma expert em ratos, mas tive meu período em Magoma com cerca de 30 ratos (que eu carinhosamente chamava de hamsters) me fazendo companhia todas as noites, incluindo no chuveiro (hamsters voyers).
Nunca tive ratos em minha casa quando sou a responsável pela limpeza e organização, mas aqui recebo muitos PCs, que não são exatamente as pessoas mais organizadas que já conheci, e em Magoma meus problemas com ratos começaram quando uma família tanzaniana se mudou para a casa e começou a deixar um banquete disponível para os ratos todas as noites (a comida ficava até em pratos, o que me fazia imaginar os hamsters com babadores lavando suas mãos antes das refeições).


Voltando à minha cozinha, mais tarde naquela noite, Kristin, coordenadora de projeto de Korogwe que estava dormindo aqui, entrou (mais) branca no meu quarto e disse: “eu vi o rato”. Claro que ela não ficou na cozinha tempo suficiente para me indicar seu paradeiro (é nessas horas que tenho vontade de perguntar “você é uma mulher ou é um rato?”).

Pois bem, o dono da casa tinha alguns galões cheios de milho que ficavam na cozinha e como era impossível manter a limpeza em volta deles eu decidi me livrar dos galões com a real desculpa de que estavam me trazendo problemas com ratos. Precisei da ajuda de três homens para movê-los, mas uma vez livre dos galões o espaço ficou muito bacana. Sem ratos (eu pensei), sem teias de aranha e sem poeira.

Como por duas noites não vi ou ouvi sinal do rato imaginei que ele havia realmente ido embora. De qualquer maneira resolvi blindar a cozinha, tapando cada buraco (na porta e no teto) e reorganizando tudo para manter ratos distantes. Feliz, pensei “livre do rato e com uma cozinha mais bonita. Essa foi fácil!”.

Quase...


Esta manhã decidi fazer um suco e achei meus tomates comidos e alguns pedaços de saco plástico que até ontem continham alguma coisa. Procurei em todos os cantos da cozinha, da sala, iluminei os cantos mais remotos com a lanterna e... nada.

Chamei o fundi (pessoa que conserta coisas, em Swahili) para me trazer veneno. Como amanhã vou a Dar es Salaam seria um bom momento para deixar veneno na cozinha já que Usiku (minha cachorra) estará fora da casa por três dias.

Bom, lembram do prefácio deste blog? Pois é, eu sou vegetariana. E isso significa que eu detesto, não suporto, odeio mais do que tudo... matar coisas. Se precisar eu mato, especialmente porque muitos dos PCs morrem de medo de insetos e aí sobra pra mim. Mas antes tento capturar o inseto e levá-lo para longe.

Enquanto o veneno não vinha comecei a pensar em alternativas:
1.     Emprestar um gato de alguém? (talvez isso também matasse o rato, mas aí seria uma coisa mais natural e eu acreditava que o rato fugiria rapidamente ao ouvir os miados e tudo se solucionaria sem derramarmos uma gota de sangue).
2.     Já sei! – pensei. Tenho que bater um papo com o rato e usar minhas capacidades de negociação adquiridas no CEAG para convencê-lo que sua melhor opção seria se render e deixar a casa, o que salvaria sua vida e me pouparia muito trabalho. E assim comecei a conversar com o rato, que eu acreditava estar escondido na cozinha, mostrando a ele meu desejo de ajudá-lo a ter uma vida melhor na liberdade do mundo exterior e longe dos meus tomates, enumerei algumas das possibilidades infinitas que ele teria fora da minha casa e... nem sinal do rato (hum, talvez a FGV não tivesse ratos em mente quando elaborou aquele curso)...


Quando o fundi e o veneno chegaram ele me disse que havia um buraco no fundo do freezer velho, que também pertence ao dono da casa (e como não funciona é usado como mesa). Decidi aproveitar sua presença para dar uma olhada.
Afastamos o freezer e meus ouvidos treinados identificaram o barulho dos sacos plásticos. Com um cabo de vassoura começamos a fuçar no buraco até que o rato saiu correndo. Pausa: ele era até bonitinho, pequeno, cinza escuro, com potencial para ser um bom hamster.

O fundi queria matá-lo com o cabo de vassoura, mas eu pulei na frente dele e disse que poderíamos capturar o rato com uma bacia (vegetariana, lembra?). E assim, senhoras e senhores, começou o espetáculo.

O rato corria pela cozinha e tentava se esconder e eu atirava a bacia enquanto o fundi o assustava com o bastão. Sob o fogão, atrás dos tanques de água, correndo pelas cestas de comida, sob o fogão novamente – parecia uma prova de percurso com obstáculos. E a bacia voava para lá e para cá, eu e o fundi pulávamos com o rato correndo entre nossas pernas e o rato corria pela sua vida.
Depois de pelo menos meia hora nós três estávamos cansados. Chamei Kristin (aquela branquinha da primeira noite) para reforçar nosso time com mais uma bacia e abri a porta da cozinha que vai para a rua para tentar induzir o rato a correr para a liberdade (também conhecida como quintal). Me posicionei no corredor que ele vinha usando desde que a “luta” começou e dei o ok para o fundi. O cabo de vassoura entrou em ação, o rato correu, Kristin pulou para trás e eu joguei a bacia. E sucesso! Ganhei um rato como prêmio!

Aí foi só levar a bacia para o quintal e assistir ao rato correndo para bem longe, limpar a sujeira, pagar o exausto fundi e comemorar.


Como não consigo evitar uma analogia, tenho que dizer que a saga do rato me lembra um pouco do nosso trabalho por aqui. Eu queria ajudá-lo. O rato queria salvar sua vida e ter comida suficiente. Meus parceiros estavam engajados. O rato não confiava em mim (o que aquela pessoa quer comigo?). Eu confiava nos meus parceiros já que tive o cuidado de escolher pessoas com quem formei relacionamentos (conheço o fundi desde que me mudei para Korogwe e a Kristin tem sido uma PC ponta-firme nos últimos nove meses). E foi necessária uma estratégia, posicionamento correto e muito empenho para conseguirmos algum resultado.

O resultado não é permanente (mais ratos podem surgir) e exige manutenção, mas estaremos aqui e prontos para eles quando eles chegarem. E no final todos saíram ganhando: o rato ganhou sua liberdade e se manteve vivo. Eu me livrei do rato. A Kristin evitou futuras surpresas desagradáveis ao entrar na cozinha à noite. O fundi recebeu TZS10,000, (cerca de US$6) o que é mais do que as pessoas fazem em uma semana por aqui.

Final feliz =)


Pp. enquanto tudo isso acontecia, Usiku, minha cachorra caçadora, aproveitava o sofá e dormia como um bebê...

quarta-feira, 2 de maio de 2012

O que nos torna únicos


A temporada oficial 2Seeds 2011/2012 terminou no último fim de semana. Ainda temos sete PCs trabalhando em seus projetos, os que decidiram estender seu compromisso até junho, mas o compromisso inicial de 9 meses foi cumprido e com seu fim, treze PCs partiram.

Engraçado notar como esta escolha de palavras importa. Há momentos aqui na Tanzânia em que não tenho certeza se tudo vai dar certo, mesmo sendo otimista e idealista por natureza. Há momentos em que me pergunto se mesmo vivendo em regiões de paz, todos vão sobreviver. E não me refiro a sobreviver fisicamente apesar das idas ao hospital para testes de malária (o caso da Lindsay, que descrevi no começo do ano, foi particularmente assustador) ou dos meios de transporte que se parecem com carrinhos de montanha russa fora do parque de diversões. Me refiro à capacidade de sobreviver psicologicamente à experiência e de sair daqui melhor.

Este trabalho é tudo no mundo, menos fácil. Os relacionamentos que formamos com as comunidades, o grau de imersão em uma realidade tão distinta, o desejo de fazer tudo dar certo e a tristeza quando algumas coisinhas nos escapam, a necessidade de sermos orientados por nossos valores a cada minuto de todos os dias, tudo isso, torna a experiência intensa. Aqui colocamos nossos cérebros, corações e almas em nossos projetos – e às vezes não é suficiente.

Mas por que estamos aqui se é assim tão difícil? Por que eu, que vim para ficar quatro meses, vivo aqui há dois anos e tenho mais um (pelo menos) pela frente?

O que torna a 2Seeds única é a oportunidade que criamos para que cada pessoa seja o seu melhor. Ser medíocre por aqui simplesmente não faz sentido. Por que alguém ficaria tão longe de tantas pessoas que ama, das suas comidas favoritas, dos namorados (atuais e futuros), das piscinas azuis, das pistas de dança, de QUEIJO e dos biquínis coloridos para ser medíocre? São tantas as coisas que não temos aqui que eu poderia tornar este meu mais longo blog e ainda assim não estaria perto de enumerar a metade. Mas a coisa que temos, que nos trouxe aqui e não nos deixa voltar pra casa antes da hora, vale tanto que mesmo transbordando de saudades os olhos ainda brilham com a perspectiva de conquista-la: aqui podemos mudar o mundo.

A hora de voltar varia de pessoa para pessoa e quanto tempo é suficiente é uma equação que eu ainda estou batalhando para resolver. Treze PCs cumpriram seu tempo, sete perseguem a missão de consolidar seus projetos nos próximos dois meses. Um brinde aos que deixaram o chão carquejado e voltaram ao mundo das geladeiras (colocando assim, vocês é que deveriam brindar a nós). Todos nós sobrevivemos! (ufa)

sábado, 21 de abril de 2012

Tabora ya Korogwe – baldes que carregam nutrientes


Tabora é o nome de uma grande cidade aqui na Tanzânia, longe de nossos projetos, e de uma pequena vila perto de Korogwe, que esconde uma população Zigua, tribo de língua complicada, e duas coordenadoras de projeto, Rachael e Ros.

Tabora ya Korogwe, como chamamos a vila para diferenciá-la da cidade, tem menos de 2000 habitantes e nos surpreende pelo quão politizadas as pessoas são. Há alguns meses, descontente com a administração, a população trancou a sala que abriga a sede municipal (representada por um executivo denominado pelo governo e um administrador eleito pela vila) e simplesmente impediu que os dois trabalhassem. O cadeado se mantém na porta e sem administração oficial, Tabora se tornou nossa vila anárquica.

Rachael e Ros formaram um grupo de care-takers, conceito que usam para designar as pessoas que tomam conta de crianças e são responsáveis pela sua nutrição. Como a Tanzânia é uma sociedade bastante tradicional (e patriarcal), normalmente quem toma conta das crianças são as mulheres, mas ainda assim as coordenadoras preferem usar o termo care-takers porque gostam de deixar a porta aberta para homens que (quem sabe um dia?) queiram assumir o papel. O grupo atualmente tem seis mamas (mães) que estão aprendendo a melhorar a nutrição de seus filhos através do cultivo, em pequenos jardins atrás de suas casas, de frutas e vegetais. A produção não é destinada à venda, mas contribuirá para o aumento do poder aquisitivo das pessoas já que cada tomate colhido do jardim significa uma economia de pelo menos TZS100. Haba na haba, hujaza kibaba (a versão em Swahili para “de grão em grão a galinha enche o papo”).

O Projeto Tabora começou em ritmo lento, mas desde que os treinamentos em nutrição começaram as mamas tem se mostrado mais ativas e algumas já começaram a colher frutos de seus jardins. As técnicas de cultivo integram conceitos de permacultura e ideias criativas para reuso de água, plantio de espécies complementares, e uso de garrafas que seriam consideradas lixo, mas que mantém a humidade do solo.

Eu estive esta semana em Tabora para o último treinamento e despedida de Rachael, que está voltando para os EUA. Foi necessário algum esforço para garantir que nossa facilitadora, que chamamos de Bibi Lishe (Senhora Nutrição), comparecesse. Ela havia cancelado sua participação, mas uma ligação ressaltando a importância de sua presença e algum trabalho na logística de trazê-la para a vila mudou sua decisão (o segredo é nunca aceitar um não como resposta).
Cozinhamos todas juntas uma porção de verduras, ressaltando o valor nutricional das folhas escuras, prestando atenção especial ao tempo de cozimento e à melhor maneira de garantir que os nutrientes “viajem” do jardim ao prato. O almoço nutritivo foi servido em uma bandeja, ao estilo tanzaniano, com uma porção de ugali de dona (pasta de milho menos branca e mais rica em fibras por usar farinha processada apenas uma vez, ao invés de duas como os tanzanianos preferem). A cada pedaço arrancado do monte de ugali, uma porção um pouquinho maior que o normal de verdura foi adicionada ao bolinho. E o corpo foi agradecendo a tão rara nutrição a cada mordida.

Hoje em Tabora, os jardins crescem nos baldes. E os baldes, mais do que água, carregam nutrientes que enchem os pratos das crianças.


Para saber mais sobre o Projeto Tabora (em inglês):

Kariakoo – um post mais business


Além dos sete projetos em vilas, temos dois projetos especializados focados em entender os elos da cadeia de valor dos agricultores de subsistência e em buscar maneiras de criarmos oportunidades para nossos parceiros. Projeto Especializado, o Projeto Kariakoo é o único sediado em Dar es Salaam, a maior cidade da Tanzânia (está para a Tanzânia, guardadas as devidas proporções, como São Paulo está para o Brasil – em opções, pobreza, desigualdade e caos). Indo mais longe, o Projeto Kariakoo é nosso único projeto localizado longe de Korogwe, a 5 horas de distância.

O primeiro time Kariakoo chegou à Tanzânia em 2011 sabendo que seu foco seria conectar agricultores a mercados, mas sem saber onde estariam suas oportunidades de criação de valor para os agricultores de subsistência. Assim, Aly, Ellie e Alex iniciaram seu trabalho formando conexões dentro do Kariakoo Market, maior mercado da Tanzânia e centro de distribuição de produtos agrícolas, e trabalhando com nossos excelentes parceiros para entender o funcionamento do mercado, os serviços disponíveis, como os agricultores poderiam assegurar melhores preços a vender seus produtos. Perceberam que mesmo com este conhecimento seria difícil transpor a distância que separa os agricultores do mercado devido à deficiência de conhecimento dos agricultores, que sem capacidade administrativa ou noções de economia facilmente perdiam as janelas disponíveis para obtenção de melhores preços. E em pouco tempo entenderam que o mundo das ONGs é muitas vezes terra sem lei, onde muitas organizações trabalham por um objetivo comum sem se comunicar e não raramente projetos de sobrepõem e erros se repetem.

Durante os últimos nove meses, Aly, Ellie e Alex trabalharam em quatro frentes para atuar nas três esferas identificadas acima:

1.     Co-criaram com o Projeto Bungu uma série de treinamentos em tomada de decisões e princípios de economia para facilitar o entendimento dos agricultores de subsistência de Bungu, excelentes produtores, da lógica dos mercados e de como tomar decisões com visão de longo prazo;
2.     Co-implementaram com os projetos Bungu e Bombo Majimoto um sistema de disseminação de preços para que os agricultores tivessem uma ideia de quanto poderiam obter por sua produção em diversos mercados na Tanzânia. Paralelamente, pesquisaram em meio aos sistemas de disseminação de preços disponíveis (implantados por outras organizações) o que melhor se encaixa à realidade dos nossos parceiros e estão neste momento conectando o sistema escolhido às vilas;
3.     Criaram, em parceria com o Projeto Korogwe (nosso outro projeto especializado do qual falarei mais em um outro post), um network de ONGs, com reuniões mensais para troca de ideias, informações e melhores práticas;
4.     Desenvolveram com os gerentes do mercado Kariakoo um sistema de catalogação de preços que disponibilizará informação através de um website que está sendo criado para o mercado.

Visitei os três coordenadores de projeto esta semana, como parte do meu plano para o fim da temporada e para a transição que nos espera. Aly, Ellie e Alex sabem que tiveram papel essencial na idealização de um projeto que ainda tem muito caminho a percorrer para gerar mudança para nossos parceiros. Às vezes temos a sensação de que andamos a passos de formiga por aqui, mas como o caminho importa tanto quanto o destino, precisamos desenhar cada passo como parte de uma longa caminhada. 


Para saber mais sobre o Projeto Kariakoo (em inglês):
http://thekariakooproject.wordpress.com/
http://www.2seeds.org/kariakoo/

terça-feira, 17 de abril de 2012

Bungu - a vila que as montanhas escondem


Esta temporada de despedidas tem me levado a rodar bastante para visitar todos os nossos projetos, falar sobre a transição com nossos parceiros e criar momentum para motivá-los a seguir em frente e buscar resultados. O discurso se repete: nosso destino é uma vida melhor, mas para chegar lá temos que abrir a trilha e seguir sempre em frente, sem andar para trás nem se perder. Estamos juntos neste caminho.

Ontem fui à Bungu, uma de nossas vilas nas montanhas (a outra é Lutindi). A belíssima vila parece um retiro espiritual que esconde excelentes agricultores, hábeis para plantar em penhascos inclinados e para usar as nascentes de água para irrigar suas plantações. Mas ainda que pela descrição e pela paisagem Bungu pareça uma vila cheia de recursos, as montanhas também escondem pobreza.

O clima temperado de Bungu atrai muitas ONGs, que veem nas montanhas uma relativa facilidade para trabalhar e fazem promessas que muitas vezes não são cumpridas. Uma das cenas mais chocantes da Tanzânia são as pilhas de recursos desperdiçados que se amontoam em tantos cantos, dinheiro usado para comprar materiais que nunca construirão nada, ou máquinas que nunca serão usadas enquanto pessoas passam fome sem ter nada.
Muitos agricultores de Bungu decidiram, depois de perder tempo e energia com diferentes ONGs, não trabalhar mais com nenhuma organização. Dois destes agricultores estão em nosso grupo em Bungu.

Semana passada, Abby, Pei e Jessica, as coordenadores de projeto de Bungu, decidiram perguntar a estes dois agricultores o por que de, não querendo se associar a qualquer ONG, eles estavam trabalhando conosco. E a resposta imediata foi: porque vocês estão aqui todos os dias. E formaram um grupo de excelentes agricultores dispostos a correr riscos para alcançar resultados.

A principal diferença do modelo 2Seeds está nos relacionamentos, baseados em confiança, que somos capazes de formar com nossos parceiros. Em Bungu, nossas coordenadoras carregam baldes de água na cabeça montanha acima, sobem e descem ladeiras diárias para visitar todas as vilas e ouviram, de cabeça e coração abertos, os desejos dos agricultores. Deste trabalho nasceu um pequeno e promissor grupo, que recebeu treinamentos em negócios, conceitos básicos de economia e tomada de decisões. Nós não dissemos aos agricultores: você agora faz parte deste grupo. Nós dissemos: nós vamos te oferecer treinamento e informação para que você decida conscientemente se quer trabalhar conosco. Dos doze agricultores convidados inicialmente, um decidiu que o grupo não atenderia suas expectativas.

A despedida de Abby e Jessica, que partem em uma semana (Pei fica até junho) foi animada por muita música e pilau (arroz com especiarias que é sinônimo de festa na Tanzânia). Belos discursos, algumas lágrimas e muitos sorrisos celebrando os primeiros passos de um projeto que, acreditamos todos nós, nos levará longe.


Para saber mais sobre o Projeto Bungu (em inglês):

Kwakiliga – a água que (só) se vê nos olhos


Kwakiliga é o nosso mais antigo projeto, começado em 2009 por Sam (o diretor de desenvolvimento de projetos que trabalha comigo) e Jesse (arquiteto formado por Stanford que não faz mais parte da organização).

Por uma sucessão de razões, incluindo o fato e que começamos em Kwakiliga antes de a organização estar conceitualmente formada e ter a experiência necessária para formar projetos sólidos, muitos projetos foram iniciados e descontinuados em Kwakiliga sem que resultados concretos fossem obtidos. Conscientes disso, esta temporada decidimos consolidar o grupo de agricultores com o qual trabalhamos, que chamamos de Kikundi (grupo em Swahili), mantendo apenas os participantes dedicados ao grupo e dispostos a tomar decisões coletivas e seguir um caminho comum. E fomos muito cautelosos ao planejar nossos próximos passos.

Domingo fui visitar Kwakiliga e passar a noite sob a brisa e a escuridão da vila de terra vermelha. Quase todos os membros do grupo compareceram (e chegaram pontualmente) à reunião semanal, que além de servir para a troca de informações foi a despedida de Sarah, uma das coordenadoras de projeto que mora na vila e que volta aos Estados Unidos no final do mês.

Passamos os últimos nove meses trabalhando com nossos parceiros de Kwakiliga no desenvolvimento do plantio de girassol. Treinamentos, pesquisa de mercado, projeções de lucratividade e muito planejamento que agora espera pelas chuvas para se tornar real – estamos em meados de abril e as chuvas de março ainda não começaram.
Kwakiliga é seca, provavelmente a mais seca de todas as nossas vilas. Não há rio ou poço artesiano e a chuva tem sido mais inconsistente ano após ano. Nossos parceiros, pessoas muito especiais, são muito magros, têm a pele curtida de sol e mesmo trabalhando em terra dura permitem que seus olhos brilhem com a perspectiva do sucesso futuro.


As pessoas não choram na Tanzânia, acho que a vida já é muito difícil e as despedidas muito frequentes, com as baixas expectativas de vida e a necessidade dos filhos de se mudar para estudar ou trabalhar se desejarem ter alguma perspectiva.

Domingo, em Kwakiliga, a chuva não veio.

Domingo em Kwakiliga eu vi água brotar nos olhos dos membros do Kikundi e das coordenadoras de projeto pela despedida que se aproxima. Só me resta desejar que a água se multiplique e que os céus, compadecidos pelas lágrimas, chorem também e com suas lágrimas deem uma chance ao girassol para florir.


Para saber mais sobre o Projeto Kwakiliga (em inglês):

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Bombo dos corações quentes

Bombo Majimoto é uma das vilas em que temos projetos no vale (as outras são Magoma/Kijango e Kijungumoto). Eu já descrevi aqui no blog a maneira particular como Bombo foi selecionada e ressaltei minha conexão com aquela pequena e isolada comunidade mais de uma vez. Eu batalhei para que tivéssemos um projeto em Bombo e minha visita à vila esta semana provou que foi uma boa escolha.

Bombo recebeu três coordenadores de projeto; Shosh, Erin e Jake. Eles ajudaram um grupo de doze agricultores a se organizar e hoje eles cultivam pimentões verdes. O grupo, que em sua maioria jamais havia cultivado vegetais, recebeu treinamento sobre a preparação da terra, o cultivo e, principalmente sobre o planejamento do investimento, o processo de tomada de decisão e o acesso a mercados, além de um empréstimo para a compra de sementes, químicos e pagamento de transporte.
O projeto se baseia no cultivo de vegetais durante o período de seca, para que os vegetais cheguem ao mercado antes de este ser “inundado” por produtos resultantes da estação de chuvas – Bombo fica a cerca de 60km de Korogwe em uma área bastante isolada, então o transporte dos produtos durante as chuvas é inviável já que a estrada fica intrafegável. Além disso, pela lei de mercado, o preço dos vegetais cai quando, após as chuvas, a oferta é muito grande.

Este começo de semana fui a Bombo ver um dos treinamentos e visitar as shambas (sítios). Sr. Mbazi, o consultor em agricultura de Magoma e um dos melhores profissionais que já conheci na Tanzânia, ensinou os agricultores a colher, separar seus produtos por qualidade e  embalá-los. Depois do treinamento fomos a uma das shambas avaliar o desempenho do grupo e aprender na prática como identificar os pimentões que estão prontos para colheita. A shamba escolhida foi a de Mama Tatu (Mãe Três – sim, este é seu nome), uma agricultora que nunca havia plantado pimentões, mas aprendeu cada lição ensinada nos treinamentos e será a primeira a vender frutos no fim desta semana.


Depois do treinamento passei algum tempo conversando com Shosh, Jake e Erin e ao final da tarde fui visitar Mama Tatu e Mama Lukia, uma senhora doce que foi a primeira mama a me receber em Bombo, um ano e meio atrás, e com quem tenho uma conexão muito forte. Mas quem disse que eu as achei em casa?
Ao chegar nas casas fui informada de que todos haviam ido a suas shambas e ao seguir o mesmo caminho e atravessar o rio me deparei com Mama Tatu e Mama Lukia, cada uma trabalhando em sua terra. O trabalho não é leve e irrigar com baldes meio acre exige dedicação. Passei o fim de tarde ajudando Mama Lukia, que irrigava enquanto seu marido aplicava inseticida, e juntas conseguimos finalizar um terço do sítio. Mama Lukia e seu marido não são mais crianças e o esforço era visível em seu semblante, enquanto ela me dizia “é pesado, mas eu não vou fracassar, nós vamos conseguir” para então me perguntar “você acha que a gente vai conseguir?”, pergunta que sempre terá um sim convicto (ou nem tanto) como resposta.

Claro que nem todos os agricultores estão em dia com suas shambas, como é o caso de Kasimu, um jovem que vive a dez passos de sua terra e ainda assim não se dedica ao projeto com a intensidade necessária. Mas o brilho no olho de Mama Tatu ao ter sua shamba sendo usada como exemplo e ao receber os muitos parabéns de todos nós pelo seu excelente trabalho mostra que o caminho está certo, e que para os que não tem medo de sol e trabalho duro há um caminho sendo desenhado pelas enxadas.

A noite acabou com Mama Lukia me preparando um banquete, muito acima de suas possibilidades, com ugali (pasta de milho), quiabo, feijão e laranja para sobremesa. Um jantar em família à luz do lampião de querosene que me aqueceu o coração e manteve a tradição de Bombo Majimoto – não apenas uma terra de água quente, como sugere o nome, mas de corações quentes e, agora, de oportunidades.


Para saber mais sobre o Projeto Bombo Majimoto (em inglês):
http://www.2seeds.org/bombomajimoto/
http://thebombomajimotoproject.wordpress.com/