quinta-feira, 16 de junho de 2011

Uma janela para um outro mundo: nem tão perto, nem tão distante, logo ali.




Tenho tanto a escrever e tanta experiência a compartilhar que sou perseguida pela sensação de que estou devendo estórias - e estou. Neste momento de transição os sentimentos também querem ser escritos, assim como as experiências na minha linda Magoma. Tem muito acontecendo do lado de dentro e do lado de fora.

Dia 10 de junho tivemos um momento mágico em Magoma, o festival de cinema Tanz Cine Brazil.
Eu percorri a vila convidando as pessoas para comparecerem ao mercado às 7 da noite e assistirem cinema brasileiro: “cinema, como uma TV grandona, venham que vocês vão gostar”.
Depois de mobilizar a equipe do festival prometendo uma noite Cinema Paradiso, eu estava ansiosa e um pouco receosa de que não tivéssemos público. Para ajudar teríamos concorrência, já que a mesquita decidiu fazer uma semana de pregação ao ar livre passando filmes religiosos sempre no último volume e com péssima qualidade de áudio nos alto-falantes (vida de Magoma é assim, som sempre muito alto, qualidade sempre muito baixa e nenhuma chance de cada pessoa guardar o que acredita e o que quer ouvir para si mesma).

Começou a escurecer enquanto preparávamos o cinema. Projetor e tela vindos dos escritórios de agricultura e educação de Korogwe (Mr. Mjema e Mr. Shemzighwa sempre me apoiando incondicionalmente); Babu, Mr. Bodo e Mw. Mary (a nova diretora da escola), incansáveis, supervisionando a preparação; a produção e eu buscando bancos na igreja, cadeiras na ADP, um tapetão na máquina de farinha e diversas outras coisas com os vizinhos; as crianças trazendo baldes para iluminação com velas – em Magoma a gente nunca tem tudo que precisa, cada coisa vem de um canto, todo evento é um evento comunitário.

A exibição começou com meia hora de atraso:
(Animação escolhida a dedo por não ter falas e mostrar um pouco do nosso nordeste; sertão brasileiro nos olhos do sertão tanzaniano)

Olhei em volta e vi cerca de 400 pessoas sentadas entre o tapetão, os bancos e as cadeiras, sorrindo e dando risada. O coração pulou...

A sessão continuou com:

Ainda que tanto Sambatown como Naiá sejam muito poéticos e carreguem analogias que não se traduzem facilmente para a cultura tanzaniana, até aqui eu sabia que as pessoas adorariam; selecionamos estes filmes para mostrar um pouco da nossa dança e da nossa floresta, todos quase sem diálogos.  Já a partir daqui teríamos uma nova barreira, a língua: em Magoma as pessoas não falam inglês e muito menos português. Os filmes estavam em português, obviamente, e com legendas em inglês.

(Momento “agora é que a vaca foi pro brejo” quando nos demos conta que as legendas deste filme estavam em português...)


As legendas em português (?!) e inglês não impediram que minha linda e doce Magoma aproveitasse cada minuto do festival. As 400 pessoas permaneceram com os olhos fixos na tela durante as três horas de sessão e nós adaptamos, desconstruindo o conceito de festival de cinema e mostrando trechos de diversos filmes para ter variedade na tela e nos pensamentos. E funcionou.
A arte é universal. E Magoma ganhou uma janela para o mundo, ou pelo menos para um outro mundo: nem tão perto, nem tão distante, logo ali.

Momentos especiais:
  1. Pessoas vindas de Mkwajuni, a vila mais distante que forma Magoma, curtiram 3 horas de festival mesmo tendo que atravessar o rio pra ir embora pra casa;
  2. Os senhores e senhoras de Magoma, alguns apoiados em bengalas, estavam lá;
  3. Mostrar Eu Tu Eles foi um momento especial para mim, que quis fazê-lo desde que cheguei a Magoma. As risadas veladas das mamas, únicas capazes de entender as entrelinhas das intenções sexuais do filme, foram deliciosas;
  4. O ahhhhhhhhh que Igor (um dos produtores do festival) e eu ganhamos ao parar Eu Tu Eles no momento da primeira cena de sexo mostra que Magoma também tem malícia;
  5. As risadas que cada beijo mostrado na tela arrancou da inocente platéia (as pessoas não beijam na Tanzânia);
  6. Pessoas me perguntando no dia seguinte sobre como a índia Naiá se tornou uma planta e como é essa planta (lenda da vitória-régia) mostra que a arte comunica sem palavras.
  7. A lua cheia fechou o cenário e iluminou o caminho de todos na volta pra casa.

A ligação do sertão brasileiro com o sertão de Magoma se mostrou tão forte que até mesmo a minha experiência aqui ganhou um novo sentido. As pessoas puderam se conectar com uma realidade parecida a um oceano de distância. Minha alma, meio brasileira meio magomense, pode conectar os dois mundos que formam quem eu sou neste momento.

Brasil e Magoma.

Pode parecer que não há nada em comum, mas somos apenas pessoas dividindo sonhos e espiando por nossas janelas para o mundo. Dia 10 de junho estivemos juntos. Fomos um.

Pp. Obrigada Cecília Queiroz, Estefania Chaves, Ronaldo Vieira, Igor Pirola, Sebastião Braga e Ramadham!

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Bombo Majimoto

Foi dentro da minha nova função, que ainda que se torne oficial apenas em agosto venho exercendo desde janeiro, que selecionei com nossos parceiros locais as vilas para os novos projetos. Uma dessas vilas se chama Bombo Majimoto.

Bombo fica perto de Magoma (cerca de 16 km – lembrando que na Tanzânia a distância varia de acordo com quem a mede), mas na região das montanhas, chamada Kizara. É uma vila isolada em que crianças fugiram de mim em minha primeira visita porque nunca haviam visto uma pessoa branca (e eu jamais me descreveria como branca sendo brasileira).
O lugar é lindo, no sopé da montanha. O nome surgiu pela nascente de água que abastece toda a vila. A água deveria ser quente (maji = água, moto = quente), mas todas as vezes que estive lá encontrei água fresca e fria.

Quando os diretores da 2Seeds vieram visitar a Tanzânia em fevereiro, os levei a Bombo Majimoto. Apesar de eu tê-los avisado com antecedência que deveriam esperar uma vila pobre (todas as casas são de pau-a-pique), com uma comunidade muito simples (2.000 agricultores de subsistência), suas expectativas foram ultrapassadas – para pior. Toda a comunidade estava nos esperando e celebrando, desde a manhã, nossa visita. Considerando que chegamos no meio da tarde, nos deparamos com uma comunidade bêbada...

Bombo quase perdeu a chance de receber um projeto pelo excesso de felicidade que o vislumbre de um projeto trouxe para a comunidade. Eu batalhei pela vila: depois de conversar com nossos parceiros locais e ter sua garantia de que o lugar é seguro, passei três dias em Bombo dormindo em casa de pau-a-pique e tomando banho ao relento, para testar as condições de segurança. E me apaixonei.
Meu fim de semana em Bombo aconteceu no meio da estação da fome que assola muitas de nossas vilas, de março a junho, todos os anos. Em Bombo eu fui para a shamba procurar vegetais com Mama Lukia para termos almoço, dividi uma espiga de milho em três e carreguei os vegetais e o milho na cabeça.
A comunidade, com toda a sua pobreza e isolamento, expele doçura por todos os seus poros. Meu nome em Kisambaa (língua local, da tribo Sambaa) chegou a Bombo, e por onde ando ouço Mamuugu ou Makihio, as duas variações para “mãe de todas as famílias”.

Minha felicidade ao voltar a Bombo semana passada carregando a notícia de que começaremos um projeto por lá me embriagou. Não precisei beber pombe (pinga local, fermentada de cana-de-açúcar ou coco) para sair de Bombo na garupa da pikipiki (moto táxi) com água escorrendo pelos olhos escondida debaixo dos óculos escuros.
Um brinde a Bombo!

Pp. O time que chega a Bombo viverá em casa de alvenaria, com forro no teto e todo o conforto possível para a pequena vila. Há apenas uma casa assim em toda a vila, que está sendo finalizada para recebê-los.