sábado, 30 de outubro de 2010

Ficando além do planejado

Estou vivendo em Magoma desde julho e estamos em uma fase muito significativa do projeto, vendo tudo que planejamos (e sonhamos) acontecer e mantendo os olhos abertos pra fazer os ajustes necessários. Fase de trabalho duro e de muito sol na cabeça.
Melancias, pimentões e ngogwe (espécie de berinjela africana) serão colhidos em janeiro. Todas as projeções de mercado, feitas e checadas inúmeras vezes com as 3 Pedras e com os técnicos em agricultura, são bastante promissoras. Kristina e eu ficamos hesitantes com tanto otimismo e buscamos garantias e contatos no mercado para viabilizar as projeções.

Para ter um projeto bem resolvido temos que ajustar resultados, corrigir os erros e melhorar o que pode ser melhorado equilibrando os valores que estamos propondo com a necessidade prática de ação (vou explicar um pouco melhor esta frase em blog sobre as melancias).
Se eu voltasse em dezembro nós não teríamos a chance de acompanhar a venda da colheita e por experiência anterior (Projeto Korogwe, ano passado) sabemos que resultados não colhidos simultaneamente às frutas são resultados perdidos. E como me foi lembrado esta semana, este pedaço do mundo não vive tantos problemas há centenas de anos à toa: muitos aspectos contribuem simultaneamente para as dificuldades. Ou seja, muita coisa pode dar errado.

Nossos amigos em Magoma estão felizes com a minha decisão de ficar mais tempo, agradecem-me frequentemente. Pergunto-me por que exatamente estão me agradecendo, até me lembrar que todos consideram a vida aqui difícil e provavelmente me agradecem pela disponibilidade em viver uma vida que eles mesmos não viveriam se tivessem escolha.

A ingenuidade de Magoma pinta um mundo muito melhor no mundo wazungu. E não há distinção de países, continentes ou idiomas; todo o mundo fora da Tanzânia é um mundo pasteurizado pela falta de referências ou informação.
As pessoas não sabem nada sobre mendigos nas ruas de São Paulo, sobre tiroteios nos morros do Rio ou sobre a seca no sertão de Pernambuco. Tampouco sabem sobre bombas no Iraque ou fome no Haiti. Qualquer país do mundo terá tratores disponíveis, casas com energia elétrica e dólares ao esticar da mão.
Eu mostro fotos, mas fotos sempre imobilizam cenas que são mais duras com som e movimento. Minhas fotos são o paraíso.

Acho que me agradecem porque tomo banho de caneca, passo o dia na shamba debaixo de sol escaldante e cozinho com querosene. Acho que me agradecem por estar marrom de poeira a cada passo que dou fora de casa ou por beber água marrom (faço chá para mascarar a aparência e o gosto da água do rio).

A verdade é que me acostumei. Banhos de caneca refrescam e limpam meu corpo. Eu gosto do sol, ainda que minha pele fique mais manchada a cada dia e eu não goste das manchas. O cheiro de querosene é ignorado pelo meu nariz e a poeira vai embora com aquela caneca que descrevi logo atrás. Chá me faz sentir gosto de Brasil a cada gole e quando meu estoque de chá brasileiro acabar, muito em breve, farei chá com ervas locais e me sentirei super saudável.
Claro, geladeira e forno me trariam um mundo de possibilidades, mas temos sido bastante criativas na cozinha (pena que não haja criatividade capaz de fazer sorvete sem refrigeração...). Até o banheiro buraco no chão me parece simpático hoje em dia (ainda que a falta de um sistema efetivo de escoamento me incomode com certa frequência).

De qualquer forma nada disso importa. Estou aqui pra trabalhar naquela frase "muita coisa pode dar errado" e torná-la um "vamos fazer isso dar certo".
Magoma, vamos fazer isso dar certo juntos!

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Divisão de Gêneros

Uma das batalhas que temos enfrentado em Magoma é a divisão entre homens e mulheres, meninos e meninas. Muitas tarefas são identificadas como femininas ou masculinas e não é fácil quebrar este paradigma.
Temos as meninas trabalhando na shamba (sítio), mas naturalmente elas se dedicam a cozinhar (nada fácil, panelas gigantescas aquecidas a lenha), buscar água (implica andar muitos metros, às vezes quilômetros, equilibrando pesados baldes na cabeça) e buscar lenha (escalar a montanha para achar madeira e trazê-la de volta na cabeça).
Os garotos operam a bomba de irrigação, abrem e fecham as entradas dos jardins e aprendem mais, já que as meninas executam as mesmas tarefas que executam em casa. Indo além, os meninos se divertem mais.

Kristina e eu somos mulheres, impossível não buscarmos igualdade entre gêneros. Nosso status de mzungu nos permite (e obriga) a fazer coisas indisponíveis para outras mulheres. Um bom exemplo:
Certo domingo houve uma grande mobilização da comunidade pela Crisma de diversas crianças. Estávamos na missa quando fomos informadas, junto com todos os presentes, que jantaríamos com o arcebispo de Dar es Salaam, a caminho de Magoma para celebrar o evento.
O jantar foi curioso, para dizer o mínimo. O padre decorou sua casa cobrindo todas as paredes com tecidos coloridos e preparou comida para o arcebispo, sua comitiva, os senhores da igreja e nós – éramos Kristina, eu e 16 senhores na sala. O arcebispo fala algumas palavras de português e conhece Traverse City, a pequena cidade no Michigan de onde Kristina vem - o que nos fez muito felizes, mas não tira o inusitado da situação.

Pressionamos todo o tempo para ter meninas na irrigação e nos treinamentos, mas confesso que a participação das meninas ainda não me satisfez – lidar com a divisão de gêneros é um desafio constante. É frustrante não vê-las cheias de energia e com fome de conhecimento, como vemos os meninos. Mulheres em Magoma trabalham pesado e nos perguntamos todo o tempo quando meninas se tornam mulheres. Mais do que isso, temos a consciência de que para ter um mínimo de independência e segurança cada uma dessas meninas terá que trabalhar muito mais do que qualquer homem para conquistar seu espaço.

Pessoalmente acho divertido cutucar os conceitos e observar a reação de nossos parceiros a sugestões como: devemos ter um dia invertido na shamba, com meninos cozinhando e meninas irrigando. A verdade é que este tipo de sugestão jamais surgiria dentro da comunidade de Magoma e de certa forma cabe a nós chacoalhar os valores. Somos mulheres, somos estrangeiras, conhecemos outras realidades. E por mais que sejamos hoje parte desta comunidade não podemos limitar nossos pensamentos ao que vivemos aqui ou estaríamos fugindo de nossa responsabilidade.
Duas sementes plantadas juntas, nossa cultura e a cultura tanzaniana, devem gerar uma plantinha híbrida, com novas possibilidades a sua frente. Que sejam novas possibilidades para meninos e meninas.

Pp.: As meninas fizeram um excelente trabalho hoje de manhã, ajudando na irrigação e plantando sementinhas. Não posso dizer que foi perfeito, mas foi um bom começo.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Sem água no céu, com água nos olhos

A shamba (sítio) tem me proporcionado os melhores momentos. Estar ali com os estudantes, enxada na mão, trabalhando sob o sol e vendo a maneira como eles trabalham, aprendem e interagem me enche de orgulho pelo projeto que montamos. O vento bate no fim da tarde para refrescar e renova o suor e o espírito (dias cada vez mais quentes por aqui). Aliás, o vento é essencial em Magoma – Kristina sempre diz que estamos no caldeirão do 2Seeds, no centro de um vale e (muito) aquecidas pelo sol.
A revelação entre os estudantes é um garoto da 5ª série, Luka. Se eu fosse uma menina estaria apaixonada por ele. O garoto opera a bomba de irrigação, trabalha o dia todo com um sorriso no rosto e ajuda os colegas a fazerem um bom trabalho.

A irrigação funciona da seguinte forma: um tubo de aproximadamente 2 metros leva água do rio à bomba de irrigação. A bomba impulsiona a água através de mangueiras de 200 metros de comprimento. Movimentamos esses canos pelos canais, abrindo e fechando com terra a entrada de cada jardim, para garantir que a água chegue a todas as sementes (acho que fica mais claro vendo as fotos, clique aqui para ter uma idéia).
E quem faz tudo isso são os estudantes, meninos e meninas da 4ª a 6ª série.

Sem água no céu, com água nos olhos

Quando trabalhamos o dia todo cozinhamos almoço na terra, debaixo de uma grande árvore que está fortuitamente localizada no centro da plantação. Às vezes comemos ugali (comida nacional, uma pasta de milho que normalmente é comida com verdura ou peixinhos MUITO pequenos). Semana passada o almoço foi makande (milho cozido com feijão).
Fico impressionada vendo os meninos bebendo 10 (!) copos de udi (mingau de milho com água e açúcar) e comendo 3 pratos gigantescos de makande. Comem como adolescentes, ainda que não passem de crianças.

Uma cena que nunca vou esquecer aconteceu ao final da tarde. Eram 16h00 quando terminamos o trabalho, começamos 7h30.
Pude notar sorrisos nos meninos, daqueles que só vemos quando eles estão aprontando alguma coisa (meus anos trabalhando em acampamento me permitem reconhecer os sinais).

Um saco plástico preto passa de mão em mão. Uma tampa azul de balde é trazida para a cena. Vejo os meninos virando o saco na tampa. O que é isso? Makande...
Os meninos guardaram o makande que sobrou do almoço no saco plástico preto, que havia sido usado para levar cinzas de espiga milho que espalhamos junto com as sementes para espantar formigas. E os 20 meninos, depois de 10 horas trabalhando sem parar, comeram a mistura de milho, feijão e cinzas como se fosse sorvete de chocolate (supondo que eles soubessem que sorvete de chocolate existe).

Mzee Francis olhou para mim e disse: muitos deles não encontram jantar quando chegam em casa. E minhas lágrimas tiveram que ser escondidas com alguns passos em direção às plantinhas mais próximas.

A chuva, que deveria ter vindo em setembro, não nos refrescou até agora. Muita gente acha que não teremos chuva este ano.
A bomba de irrigação ajuda as plantinhas, que em breve serão redondas melancias, a sobreviver. E minhas lágrimas salgadas trazem mais algumas gotas de água para a cena, que me lembra porque estou vivendo tão longe das pessoas que amo.

Treinamentos para watoto

É difícil descrever a sensação que temos tido nas últimas semanas aqui em Magoma. Muito do que trabalhamos tanto para proporcionar está acontecendo.

Os dias têm sido ocupados por tardes de irrigação, manhãs de treinamento e muito trabalho. E estamos felizes :)

Os estudantes já receberam dois treinamentos: Manejamento de Recursos Hídricos e Conservação do Solo. Os profissionais de agricultura vêm de Korogwe para oferecer treinamento aos estudantes. E o desafio acontece na novidade da ação, primeira vez que os treinamentos são direcionados a crianças (watoto).
Não é difícil sentir certa apreensão nas vozes dos palestrantes ao início dos treinamentos, mas acho que a resposta sorridente ao "Hamjambo Watoto?" (Tudo bem, crianças?) e o jeito despreocupado que as crianças batem palmas ao final dos treinamentos (há uma coreografia para isso) são boas recompensas.

Os palestrantes não estão recebendo dinheiro pelos treinamentos, acordo que fizemos com o Chefe do Distrito. Fica clara a insatisfação de alguns deles, mas não vamos pagá-los para fazer o que é responsabilidade de seu cargo e não queremos estabelecer este parâmetro para o futuro do nosso (e de outros) projetos. Tenho dedicado algum tempo a pensar em incentivos (que não sejam dinheiro) que possam fazê-los sentir-se recompensados. Confesso que não encontrei uma solução até o momento.

O treinamento em recursos hídricos foi uma grande surpresa, já que o Oficial de Irrigação estava visivelmente descontente por vir a Magoma sem pagamento extra. Mas se mostrou um bom profissional e proporcionou um excelente treinamento para as 20 crianças e 2 professores presentes, Mr. Bodo e Mzee Francis.
O treinamento em conservação do solo foi oferecido por uma senhora doce que claramente entende a importância de disponibilizar conhecimento aos estudantes. Ela teve que vir no domingo e dormir numa pensão para estar aqui no horário combinado. E fez questão de conhecer nossa shamba após o treinamento. Infelizmente o treinamento foi explanativo e não conseguiu envolver as 38 crianças presentes, que se cansaram rapidamente.

Um custo que não havíamos projetado antes dos treinamentos foram os cadernos que compramos, pois as crianças não tinham onde fazer anotações (TSH250 cada – US$0,17). Outras ONGs na região compram refrigerantes e pagam as pessoas que recebem treinos, incluindo TSH10.000 por um treinamento para cultivo de mangueiras (muito dinheiro!).
Nós discordamos. Compramos uma garrafa d´água para o palestrante e cadernos para as crianças. E queremos que ambos compareçam ao treinamento pelo motivo certo: conhecimento e oportunidades.

As pessoas vivem com (muito) pouco em Magoma. Muitas vezes itens simples como cadernos (ou comida) faltam no dia-a-dia. Escolhemos lidar com isso proporcionando ferramentas para que essas pessoas possam batalhar por um futuro mais colorido. E possam comprar refrigerantes com seu próprio dinheiro.

Próximos treinamentos:
Manejamento de resíduos
HIV
Reflorestamento
Igualdade entre sexos.

Por vir:
Extensão dos treinamentos com aulas práticas que pretendemos desenvolver com os Oficiais de Irrigação.
Estudantes ensinando estudantes e disponibilizando conhecimento para a comunidade.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Montanha do abismo subestimado

Magoma fica entre duas grandes montanhas. A vila de Makangara, vila central de Magoma, é um pequeno aglomerado de casas circundado por plantações de milho (longe do rio, à esquerda da estrada) e arroz (perto do rio, à direita da estrada).
Desde a primeira semana, Kristina e eu pensamos em escalar as montanhas.

A montanha menos alta (não dá pra dizer que é baixa) fica atrás da nossa casa. São três montanhas, como um camelo de três corcovas (eu sei que não existe, só estou imaginando) em crescente, da montanha mais baixa à mais alta.
Combinamos escalar esta montanha assim que todas as sementes fossem plantadas e assim seguimos ontem, 5h30 da matina, com uma garrafa de água cada e um pequeno pacote de tâmaras que Mzee Malingumu nos deu de presente: "No meio de uma longa jornada você só precisa de uma ou duas tâmaras e está alimentado, tudo fica bem".

A primeira montanha era íngreme, mas possível. Chegamos ao pico e nos enchemos de coragem pra continuar a caminhada. "Não podemos estar tão longe" dissemos uma à outra.

*Minha analogia à primeira montanha é a busca dos parceiros ideais para montar o projeto conosco. O início de tudo e a base para todas as decisões que se seguiram.

Momento mais engraçado do dia: sentamos em uma pedra, ainda antes do pico da primeira montanha, sem ar, pra admirar a paisagem (ok, pra descansar também, mas a paisagem era mesmo linda). Só nos esquecemos de um detalhe: em Magoma você nunca está sozinho, por que ali seria diferente?
De repente surge uma Bibi (vovó) por uma pequena trilha, apoiando em um pedaço de madeira e carregando um machado equilibrado na cabeça. Bibi, vendo as wazungu (brancas), disse: vocês têm que subir ao topo, dá pra tirar umas boas fotos lá!
Assistimos Bibi continuar sua caminhada montanha acima enquanto recuperávamos o fôlego. Seu desejo é uma ordem, Bibi, estamos a caminho!

Em algum momento perdemos a trilha (quem roubou as placas de "2º pico, à esquerda" ou "Welcoming-cocktail para hóspedes do resort à direita"?). Os caminhos não passavam de tortuosos rastros que indicavam que alguém (ou alguma coisa) passara por ali algum dia, cercados por árvores de espinhos afiados (por que as plantas aqui são sempre tão dolorosas?).
Fomos encontrando espaço no meio dos espinhos e arbustos, até que olhamos para a esquerda assustadas. Kristina disse "Holy shit!". O abismo estava bem ali, a alguns passos de nossas perninhas cansadas, como não vimos isso chegando?
Fomos subindo lentamente, com todo o cuidado para não cair, a cada três passos uma dizendo à outra "Não caia!". Os pés tentando achar onde apoiar e o corpo se escorando nas poucas árvores para respirar.

Após algum (longo) tempo nos vimos em um trecho um pouco mais plano e conseguimos nos localizar melhor. O pico da segunda montanha estava sob nossos pés ganhando o contorno da terceira montanha, a mais alta e nosso objetivo final.

*A segunda montanha foi nosso modelo de negócio, subindo sempre com um abismo logo abaixo caso fizéssemos alguma besteira. As terras que estamos trabalhando, a decisão sobre o que plantar, a preocupação em criar um modelo replicável para outros membros da comunidade.

A terceira montanha logo à frente (melhor dizer acima), só nos restava caminhar. E sobe, sobe, sobe, pernocas tremendo com o esforço. Quando alcançamos o topo fomos brindadas pela vista mais linda: Magoma pequeninha lá embaixo, as plantações de arroz, as duas Acácias (árvores) na chegada da vila. À distância foi possível ver todos os três lagos da região, incluindo Lago Kumba, muitos quilômetros longe.
O sol apareceu para iluminar o penhasco e nos dar um bronzeado (meio esquisito, marcas de calça arregaçada no joelho e múltiplas blusas).
Kristina olha pra mim e diz "Eu realmente subestimei esta". Olhamos o relógio e constatamos as 5 horas de subida para chegar ali.

Presenteei-me com a rebeldia de usar a parte de cima do biquíni por alguns minutos (saias acima do tornozelo são muito curtas para Magoma).

Algum tempo passou até eu olhar ladeira abaixo e constatar movimento. "Será que tem alguém ali?" penso. Ajusto o foco, olho melhor: uma família inteira de macacos! Kristina e eu, que sempre debochamos dos abrigos no meio da plantação de sisal para espantar macacos comedores de folhas, nos vimos 12 vezes erradas. Em Magoma nunca se está só...

*A terceira montanha, a concretização da idéia: o horizonte de sonhos à frente e o trabalho duro pra plantar esses sonhos nas sementes de melancia. Montanha escalada, sementes na terra.

Pensam que acabou? Que nada, essa era a montanha menos alta, lembram? A montanha mais alta ainda nos observa do outro lado, esperando a colheita e os resultados (e os inevitáveis ajustes que teremos que fazer).

As duas garrafas d água nos deixaram com sede, mas Mzee Malingumu estava certo: algumas tâmaras e você não precisa de mais nada, tudo fica bem.
A descida foi ao pôr-do-sol, por uma trilha mais distante do penhasco. 2 horas de caminhada e nossa linda Magoma nos esperando com seu chão vermelho craquelado.

Pp. cliquem aqui para ver as fotos da subida da montanha e da nossa linda fazenda de melancias.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Plantando melancias

Se eu não tivesse vivido um único bom dia aqui em Magoma, esses dias teriam feito tudo valer à pena.

Semana passada fomos plantar melancias – concretizar o projeto que batalhamos tanto para montar.
O grupo de estudantes variou entre 25 e 80, coordenados por Mwalimu Mkuu com ajuda de Mzee Francis e Mr. Bodo.
As aulas na Tanzânia acontecem da maneira mais impessoal possível, o professor escrevendo na lousa para um grupo de (muitos) alunos que podem ser punidos com tapas quando respondem as perguntas incorretamente. Não há interação, não há troca.
Na fazenda tudo foi diferente. Vimos os alunos fazendo perguntas e sugestões a Mwalimu Mkuu, se divertindo, trabalhando duro das 7h30 às 16h00.
O ritmo de aprendizado acertou o passo com o ritmo de trabalho. No início nos movimentávamos vagarosamente, irrigando os canais e montando os jardins. Conforme os alunos foram aprendendo o trabalho foi ganhando velocidade. Em um momento no meio da tarde atingimos o ponto em que todos os adultos estavam descansando enquanto os alunos faziam o trabalho (com eficiência) sozinhos.
Claro que nem tudo foi perfeito. A divisão de tarefas entre meninos e meninas carrega toda a desigualdade entre sexos que vivenciamos cotidianamente em Magoma. As meninas foram, nos dois dias que passamos com a enxada na mão, as primeiras a deixar a área. Isso me entristece porque meninas precisam trabalhar duas vezes mais pesado para ter algum controle sobre suas próprias vidas – eu queria tê-las ali, cheias de vida e fome de conhecimento.

Para os meninos que ficaram até o final compramos sorvete (gelinho, vendido pela esposa do Mr. Bodo). Utopicamente pedimos que as embalagens do gelinho não fossem jogadas no chão da fazenda – na Tanzânia se joga lixo exatamente no lugar em que o lixo é gerado, da janela do ônibus, andando na rua, na porta de casa, onde você estiver. Qual não foi minha surpresa quando cada um dos estudantes trouxe seu saquinho de sorvete para mim e o colocou no saquinho de lixo que eu estava segurando.
Sou ingênua? Sim.
Sou sonhadora? Sim.
Cada saquinho plástico que recebi, incluindo o saquinho de sorvete do Miga (agricultor que, nas palavras de Mwalimu Mkuu, trabalha pesado e foi chamado para ajudar os estudantes no trabalho), foi uma gota transbordando no nosso oceano de sonhos.

Enquanto plantávamos, ensinei um pouco de Português aos estudantes, que retribuíram me ensinando Kisamba (língua local). Ouvir "água", "melancia" e "boa tarde" me proporcionou conforto e felicidade. Mostrar cartões postais de São Paulo e saber que agora um pequeno grupo de pessoas que mora longe longe longe, em Magoma, sabe onde fica o Brasil e que falamos Português? Não tem preço!

sábado, 16 de outubro de 2010

3 pedras

3 pedras

Estamos na Tanzânia para trabalhar conjuntamente com a comunidade local, juntando nossos históricos e habilidades diferentes por um objetivo comum – 2 sementes plantadas juntas gerando uma única vida.
Uma parte significativa dos primeiros meses foi dedicada a encontrar os melhores parceiros e construir uma relação de confiança que nos permitisse extrair o melhor de todos os envolvidos e montar o projeto de forma sustentável e longeva.
Mzee Francis disse que para cozinhar à lenha, como acontece aqui na Tanzânia, são necessárias 3 pedras. Essas 3 pedras conseguem sustentar a panela no chão e manter a eficiência do fogo.
Nós temos 3 pedras segurando uma grande panela que, se tudo correr bem, cozinhará 813 refeições diárias, temperará a vida de 813 estudantes e servirá cabeças pensantes e ativas a uma sociedade que precisa desesperadamente de pensamento crítico e possibilidades.
É com grande orgulho que apresento nossos 3 principais parceiros:

Mr. Bodo – Gerente de Relacionamento (à esquerda)
Mr. Bodo é chairman do Comitê de Pais e Responsáveis da Escola Primária, do Comitê da Água para Uso Doméstico, do Comitê da Escola. É também membro do Banco Comunitário VICOBA, super interessante, em que as pessoas se organizam para ampliar suas possibilidades de investimento. Muçulmano, tem uma linda família – esposa, 4 filhos e (muitos!) agregados – e toma conta de diversos negócios da vila, como a Máquina de Farinha e um pequeno Café (que na verdade acontece na rua).
Acabou de comprar um modem para aprender a usar a internet no computador de seu irmão, o único em Magoma com exceção dos nossos notebooks e dos computadores das ONGs – esta semana fomos tentar ajudá-los a usar o tal computador e nos deparamos com as caixas ainda fechadas, servindo de mesa de cabeceira para Mzee Malingumu (o irmão) e sua esposa (a máquina foi comprada há 2 anos, mas nunca foi usada já que eles não sabem como ligá-la).
Mr. Bodo está sonhando em buscar fundos para comprar computadores para a escola assim que o empréstimo feito pela 2Seeds for pago e ambos os pedaços de terra da escola estiverem produtivos gerando refeições para os estudantes.

Mr. Simoni Mvung / Mwalimu Mkuu (Professor Chefe) – Gerente de Agricultura (no centro)
Mwalimu é um entusiasta, estudou em escola agrícola e entende de irrigação. Esta semana ele levou 2 grupos de alunos, 4ª, 5ª e 6ª séries, para plantar melancia. Ele não só é capaz de coordenar sozinho grupos que variaram de 25 a 80 crianças, como está se dedicando a garantir que cada um desses estudantes aprenda como fazer os jardins (pequenas áreas circundadas por canais por onde a água deve passar) e usar a bomba de irrigação.
Sua esposa também ensina na Escola Primária. Eles têm 4 filhos.
Mwalimu está batalhando para não ser transferido de Magoma e poder tocar o projeto por longo tempo. No início do ano, antes de chegarmos aqui, ele usou seu próprio dinheiro para comprar sementes e montar a pequena fazenda de milho que gerou comida para os alunos durante as provas.

Mzee Francis Mwankai – Gerente de Meio-Ambiente (à direita)
Mzee é um senhor, deve ter cerca de 70 anos (a idade exata não é divulgada). Membro da Igreja Anglicana, tem a habilidade de trabalhar em conjunto com pessoas de todas as religiões presentes em Magoma e de olhar para a pessoa, não para suas crenças. Faz parte de todos os comitês que visitamos até agora, trabalha ativamente pelo desenvolvimento da região.
Num lugar de poucos sonhos, Mzee cultiva um pequeno jardim no quintal de sua casa de pau-a-pique. As mudas são usadas para reflorestamento.
Mzee será responsável pela “floresta” que estamos começando na terra da escola, escolhendo as árvores mais adequadas e ensinando os estudantes a cuidar delas. Ele diz que a geração dele só consumiu os recursos e precisa ensinar a nova geração a gerar recursos antes que a Tanzânia se transforme em um deserto.
E não se engane pela idade, nosso querido Mzee passou o dia plantando melancias ontem conosco, com a enxada sobre o ombro e debaixo de 35° de sol.
Mzee também criou nosso slogan “Growing a New Generation” e definiu nosso grupo como “as 3 pedras”.

Curtas de Magoma

Estávamos voltando de Korogwe, carregando 55L de combustível no ônibus para abastecer a bomba de irrigação. O ônibus estava lotado, como sempre.
Em uma das primeiras vilas na estrada de terra, a moça que estava sentada conosco, com sua filha no colo, precisou descer. Nós estávamos no fundo do ônibus, que tem apenas uma porta junto ao motorista.
A irmã da moça se dirigiu à frente do ônibus para dizer “shusha” (desce) – os ônibus param em absolutamente qualquer lugar que você queira, incluindo paradas a 10 metros de distância uma da outra para pegar 2 grupos de pessoas que poderiam esperar juntos e contribuir para que os 38km de Magoma a Korogwe fossem percorridos em menos de 2 horas.
O ônibus parou e a moça, carregando o bebê de pouquíssimos meses, começou a se movimentar. Uma discussão intensa tomou conta da multidão. Em alguns segundos o ônibus decidiu que a melhor forma de lidar com a situação seria passar o bebê pela janela para alguém que estivesse no chão enquanto a mãe se espremia para alcançar a porta.
O bebê passou de mão em mão até o projeto estar completo. A mãe o recuperou alguns minutos depois quando finalmente conseguiu descer.

A propósito, o combustível chegou bem e já está sendo usado. Os galões, que inicialmente continham ácido sulfúrico 98%, foram exaustivamente lavados por Kristina e eu, com muita água e sabão, deixando marcas em nossas roupas. Tive que caminhar por todo o mercado no SOL em busca de galões (não, eles não são vendidos no posto de gasolina) até pagar TSH12000 por dois containers azuis que deveriam comportar 70L de combustível após serem bem lavados – comportaram 55L.

sábado, 9 de outubro de 2010

The saga of the sexy tractor

Estou parafraseando o título do blog da Kristina (http://themagomaproject.tumblr.com) – Kristina, do you read my blog?

Fase 1 - A terra da escola foi limpa por dois homens que trabalham pesado (palavras dos nossos parceiros – TSH60.000 / US$42).

Fase 2 – Kristina e eu compramos sementes de melancia, pimentão verde e uma variedade africana de berinjela; além de fungicidas e fertilizantes. As duas pequenas caixas estão aqui no meu quarto e olho para elas todas as noites vendo 813 refeições diárias durante três meses – motivador, apavorante e cheio de significado (TSH176.500 – US$122).

Fase 3 - Fui com Mwalimu Mkuu (diretor da escola e nosso Gerente da Fazenda) comprar uma pumping machine para bombear a água do rio e irrigar a terra. Compramos a máquina, 200m de mangueiras, um tubo que vai do rio até a máquina (TSH620.000 pelo conjunto – US$430) e 20L de combustível (TSH33.000 – US$23).

Fase 4 – aí é que começa a história...

Com a terra limpa, o próximo passo seria ará-la com o trator (TSH80.000 – US$55,40), já que ela não vinha sendo cultivada há algum tempo.
Não existem tratores em Magoma, as pessoas não têm dinheiro pra usá-los. Mas fomos informadas sobre três possibilidades de tratores que poderíamos contratar. Mwalimu disse que bastava ele ligar e o trator viria.

Ouvimos que o trator estava trabalhando em outra terra. Ouvimos que o outro trator tinha um problema no arado. Ouvimos que o primeiro trator estava quebrado. Ouvimos que o trator estava a caminho (longo caminho já que não chegou).
Foi uma versão por dia durante uma semana, até que Mwalimu e Mr. Bodo (nosso Gerente de Relacionamento) subiram em uma moto e foram para Kerenge (próximo ward*, algumas vilas de distância) para resolver o problema.

Levou dois dias, mas o trator chegou. E quebrou.

Quando vimos o trator ficou fácil entender o problema: máquina de 1975 (tem uma plaquinha do Brasil soldada na lataria!), zero de manutenção. Os pneus furam todo o tempo, o que se explica pela ausência de borracha.

Kristina deu o apelido de sexy tractor, não sei bem por que. Podemos considerar sexy o grupo de estudantes + 2Seeds + parceiros tanzanianos empurrando o trator, diversas vezes, para pegar no tranco (não, ele não tem bateria para ignição).

De qualquer forma nosso sexy tractor passou o dia trabalhando na terra ontem (comigo sentada sobre a roda fotografando a ação). Mais um dia (que será hoje se o motorista comparecer) e ele termina o trabalho.
Mzee (senhor, no sentido de o mais velho) Francis (nosso Gerente de Reflorestamento) está acompanhando cada etapa e supervisionando o trabalho. Aliás, a maneira como nossos parceiros têm trabalhado bem juntos, dividindo tarefas, se empenhando e tomando decisões em conjunto tem sido a parte mais motivadora da semana de espera pelo trator (afinal eles farão o projeto acontecer quando nós não estivermos aqui).

Próximas etapas:
1- Fazer os jardins (pequenas fileiras de terra com um “vale” de cada lado. As sementes ficam nas fileiras e os vales trazem água). Simultaneamente, montar um berçário para as plantas no cantinho da terra, até que elas estejam fortes o suficiente para serem transplantadas.

2- Irrigar a área com a pumping machine.

3- Estudantes plantando.

Que venha a primeira montanha!

* Magoma é uma divisão dentro do Distrito de Korogwe. A divisão tem quatro wards (deve ter um nome para isso em português, mas não me vem à cabeça): Kerenge, Magoma (sim, mesmo nome), Mashewa e Kizara. Os quatro wards juntos englobam 25 vilas, 28 escolas primárias, 4 escolas secundárias e 50.000 pessoas, aproximadamente)

Correndo ao nascer do sol

A que horas é possível correr em uma vila em que as pessoas sentam para assistir as wazungu (brancas) lavando roupas e malhar é palavra ausente no dicionário?

Para responder a esta pergunta tenho acordado às 5h30 da manhã todos os dias. O corpo funciona cheio de energia, despertando antes do alarme, desde que sentiu o gostinho da corrida ao nascer do sol.
Correr é engraçado. Eu odeio correr, sempre odiei, mas sempre corri esperando o dia em que vou sentir aquele click, aquele que todo maratonista menciona, e me sentir flutuando.
Não, este click não foi ouvido em Magoma (será que tenho que correr 42 km ou sou surda mesmo?).
Mas correr tem me feito um bem sem fim: sinto-me livre, sinto-me jovem; pronta para enfrentar qualquer desafio – endorfinas provando a teoria dos gurus da malhação.

Ontem estava correndo até Songea (próxima vila, 5 km). O fôlego estava faltando, mas pensei “só vou andar depois daquela árvore”. Foi quando ouvi “Pole sana!” (sinto muito). A árvore ficou muito longe, eu estava gargalhando! Duas mamas (mulheres adultas) estavam a caminho da shamba (fazenda de subsistência) e sentiam muito pelo meu esforço :S

Magoma fica no vale entre duas montanhas, uma mais baixa, a outra mais alta. Vamos escalar a primeira montanha depois de plantar e planejamos escalar a segunda depois da colheita (qualquer simbologia não é mera coincidência).
O sol nasce atrás da montanha mais alta e é um espetáculo ver tudo mudando de cor. No mesmo dia do “pole sana” três Timão cruzaram a trilha (não, o Pumba não estava presente).

Não consigo pensar em nada que eu odeie tanto e me faça sentir melhor.
Eu amo odiar correr todas as manhãs!

Comida em Magoma

Variedade não é a palavra adequada para descrever nossas possibilidades de cardápio em Magoma. Meus colegas americanos (como americanos comem!) sempre brincam que temos que garantir nossa segurança alimentar para poder batalhar pela segurança alimentar dos outros – “Prezados passageiros, em caso de acidente vista primeiramente sua máscara de oxigênio para depois ajudar a criança a seu lado”.
Faz sentido, ainda que seja brincadeira. Não estamos, em nenhuma circunstância, perto de insegurança alimentar - tenho até comido demais. O problema está na variedade e não na quantidade.

Costumo dizer que nossa principal fonte de proteína são as formigas (tempero presente em grãos, açúcar, farinha...).

Ovos, quando os achamos, parecem ovos de codorna – a não ser quando temos a sorte de tropeçar em lindos ovos de pata que fazem nossos olhos gulosos brilhar (são vendidos pelo mesmo preço, vai entender).

Vemos cabras por todos os lados (Kristina adora carne de cabra, eu sou vegetariana), mas nunca vemos pessoas comendo carne de cabra (o que é intrigante porque tenho certeza que elas as criam com essa intenção).

De vez em quando comemos folhas não identificadas – os chumaços murchando no mercado me partem o coração e sei que ninguém mais vai comprá-las. Às vezes algumas flores brotam antes de cozinhá-las, às vezes os cabos são inquebráveis mesmo para os dentes mais afiados.

Também compro raízes esquisitas, sou uma pessoa curiosa, mas Kristina tem medo de comê-las e serem venenosas (alguém precisa explicar a essa menina os princípios da Permacultura).

O chilli no domingo foi um capítulo à parte (agradeço Chris e Fabis por isso). Tínhamos apenas metade dos ingredientes, mas e daí?

Chris me disse que para fazer pimenta calabresa eu teria apenas que torrar as sementes de qualquer pimenta vermelha disponível. Hum, parece fácil...

Dedos ardendo – parte da minha rotina (eu ADORO pimenta, Kristina diz que seus hábitos alimentares foram alterados permanentemente depois de viver comigo).

Olhos ardendo – devia ter tirado as lentes de contato.

Tosse incontrolável – será que estou fazendo certo?

Falta de ar, incapacidade de respirar – socorro!

A fumaça dominou a casa e não conseguimos entrar por 20 minutos. Eu tossia sem parar, meu rosto vermelho e ardendo como se eu tivesse dormido no sol sem protetor. Kristina lavava roupas no quintal, longe da cena do crime, e chorava de tanto tossir.
O resultado foi usado no nosso delicioso chilli: uma colher de sobremesa de pimenta (quem disse que qualidade se mede pela quantidade?).

Também inventei uma receita de veggie burguer que levou meu estômago a SP.
E claro, achamos um peixe no meio dos nossos amendoins :)