sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Um 2012 de escolhas para todos nós!


Ontem recebi um texto muito bonito de uma amiga, Chris Mazzotta, sobre uma psicóloga chamada Debora Noal que trabalha para os Médicos sem Fronteiras em regiões de conflito, catástrofes naturais e guerra civil. E foi muito interessante, porque fiquei pensando se o que faço aqui na Tanzânia é suficiente, se eu também não deveria me enredar pelo mundo das grandes desgraças humanas. Mas conforme fui lendo o texto fui fazendo paralelos com minha vida aqui na Tanzânia, teoricamente um país de paz se considerarmos que a guerra só nos aparece vestida de armas e sangue.

Logo após ler o texto, tive que levar uma de nossas voluntárias ao hospital. Ela estava passando muito mal e nossa esperança de que fosse malária (e portanto passível de tratamento relativamente fácil) não se confirmou. Ficamos internadas o dia inteiro, ela sem cor e sem forças para levantar em uma enfermaria com cerca de 30 pacientes. As enfermeiras se revezavam com suas mãos duras para pendurar soro e muitas vezes fazer procedimentos que envolvem sangue sem luvas nas mãos em uma país de alta incidência de HIV. As luvas estavam disponíveis, a gente compra todo o material descartável e remédios, subsidiados pelo governo e pela grana de assistência internacional que vem para este mundo. Na mesma enfermaria havia uma senhora morrendo, que não sei se teve a chance de conhecer 2012, mulheres com malária severa, uma senhora que não respira sem o tanque de oxigênio, uma moça recém saída de cirurgia, uma maluca que gritava e se arrastava no chão e, Lindsay, a voluntária de quem eu estava cuidando.

Fui pensando nisso, pensando no que me trouxe à Tanzânia e no trabalho que faço. Muitas coisas me fazem falta aqui, nenhuma delas é dinheiro. A maioria das pessoas não entende o que eu vim fazer aqui ou porque me importo com esse mundo que elas acham que não me pertence, já que pessoas como nós têm o privilégio de escolher o mundo em que vivem. Eu aceitei esta escolha e me cerquei de pessoas que morrem de doenças tratáveis, que andam quilômetros com baldes na cabeça para conseguir água, cujas crianças têm umbigo saltado porque não têm assistência ao nascer, em que a fome dói no estômago todos os anos, quando os funerais de multiplicam ao mesmo passo que o milho escassa.

O texto e o hospital me fizeram lembrar de tudo isso. Me fizeram lembrar que ainda que eu não me exponha aos perigos que a Debora se expõe, eu estou criando oportunidades para que não haja guerra civil aqui e para que as pessoas tenham alternativas pacíficas para atacar a violência que as assola. Sim, porque para mim a fome é uma violência, pessoas morrendo de doenças tão tratáveis quanto uma pneumonia leve é uma violência, um hospital em que se espera 7,5 horas em meio a gritos pelo resultado de um exame que demora 10 minutos para ser executado e chega incompleto por falta de reagentes químicos é uma violência.

Eu vim trabalhar na Tanzânia para criar oportunidades para pessoas. Para que essas pessoas que me agradecem por eu estar aqui tenham realmente motivos para me agradecer. Para gerar alternativas, possibilitar escolhas, viver onde ninguém mais quer viver para que no futuro alguém queira viver aqui.

Sim, eu sinto falta dos meus amigos, da minha família, das cachorras, de dançar levemente e de ver o sol nascer na praia. Sinto falta de deitar no colo das minhas amigas e ganhar cafuné, da liberdade de viver sem amarras, de amar sem amarras, de me preocupar apenas com as minhas escolhas. Como eu disse, sinto falta de muitas coisas, mas nenhuma delas é dinheiro.
É inegável que sonhar com escolhas para os outros cria tensão, que ser a fonte de inspiração para comunidades inteiras exige uma força inesgotável, que carregar a imagem de todo um mundo longe (ou percebido como longe) daqui é exaustivo, que gerar ideias diárias para que sistemas tão simples quanto partilha de comida funcionem e vê-las falhar dia após dia exige perseverança infinita e compreensão para que a culpa não seja superficialmente (e erroneamente) atribuída. Sou mais forte hoje do que jamais sonhei ser. Não vim aqui buscar força, mas como muitas coisas que não se procura, fui encontrada por ela.

Desejo que em 2012 o mundo seja mais bacana, que cada um de nós encontre sua própria e singular forma de gerar energia boa e de irradiar cores. Desejo que as pessoas aqui na Tanzânia agarrem algumas das oportunidades que estamos gerando e que façamos um bom trabalho para que estas oportunidades sejam duradouras. Desejo que as pessoas aí no Brasil, ou em Portugal, tenham os amigos, o colo, o cafuné, o sorvete de pistache, o nascer do sol na praia e todas as coisas deliciosas que esse mundo nos proporciona. Que um dia isso seja uma possibilidade para todo mundo! Que tenhamos escolhas! E que estejamos aqui para ver esse lindo amanhecer juntos! Feliz 2012!

Pp. A Lindsay está melhorando. Ainda não sabemos exatamente qual é o problema, mas ela já tem cor e agora esboça um sorriso. E a matéria, muito bonita, sobre Debora Noal, você encontra neste link:

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Cabeça, alma e a Paz Mundial

Desde julho, tenho dividido minha vida e trabalho com o Sam, Diretor de Desenvolvimento de Projetos que trabalha comigo. Somos os dois únicos funcionários da 2Seeds e planejamos basicamente todos os passos da organização, de quem vai levar o PC com malária ao hospital ao plano de expansão para outros países. Frequentemente a coisa fica tão complexa que nos perguntamos: que tal discutirmos um assunto mais ameno, como a Paz Mundial, para relaxar? Dividimos o trabalho, a casa e a nossa dedicação incondicional a tornar o (quase) impossível possível.

Sam tem 23 anos e se formou em Estudos Africanos em Harvard. É inteligente, muito carismático e, digamos assim, um moleque.
Eu, que sempre me achei jovem (e sou!), me tornei a mãe de todas as famílias (significado de Mamuugu, meu nome em Kisambaa), de todos os Coordenadores de Projeto e... do Sam.
Nossas diferenças formam uma equipe forte, com base acadêmica (Sam) e experiência prática e cultural (eu). As diferenças são claras na maneira que descrevemos o mundo ou falamos Swahili (que eu aprendi em Magoma e Sam aprendeu em Harvard). Sam é a cabeça e eu sou a alma.

Momento de mudança, cabeça e alma se separam fisicamente muito em breve. A temporada do Sam aqui na Tanzânia está acabando e no sábado ele volta pros Estados Unidos (que ele insiste em chamar de América e eu aceito chamar de tudo, menos América).


Sam e eu batalhamos muito, quase sempre juntos, para equilibrar alma e cabeça. Foi impressionante ver como ele descobriu sua alma nos últimos 6 meses, se jogou, se questionou, passou por momentos difíceis, teve que se conhecer melhor e vocalizar seus medos. Tivemos momentos em que ele, emocionalmente abalado, teve que sair da sala para se recompor enquanto eu, calmamente, lhe oferecia meus argumentos.

Sam e eu discutimos todo o tempo (quem mais no mundo discutiria as diferenças entre moral e consciência às 23h00, depois de trabalhar 16 horas?), nos desafiamos e nos respeitamos. Se eu não lhe tiver ensinado mais nada, pelo menos sei que o ensinei a não usar a toalha de rosto pra limpar o chão (e tenho certeza que Maelis, sua namorada, me agradecerá eternamente por isso).


O trabalho aqui não é fácil e os objetivos são ambiciosos.
Batalhamos para que pessoas que aprendem a contar, número por número, de 1 a 1.000.000 (isso mesmo, as crianças continuam a aprender adição na sétima série para chegar a 1.000.000) consigam projetar lucros e tomem decisões fundamentadas.
Batalhamos para que um agricultor que não sabe quantos dias tem uma semana negocie a venda de sua colheita e poupe dinheiro para reinvestimentos.
Batalhamos para que as pessoas batalhem por seu próprio destino e para que mais estrelas cadentes sejam vistas no céu da Tanzânia e mais pedidos sejam feitos sobre a terra vermelha (Sam jamais descreveria nosso trabalho assim).
Precisamos de cabeça(s) e de alma(s). Precisamos acreditar na Paz Mundial.


Sam, I wish you could read some Portuguese so you could read how proud I am of everything we've done together. Cheers to your soul! Cheers to my mind! On the way to the World Peace! Tuko pamoja ;)

sábado, 19 de novembro de 2011

As mudanças que chegam com o vento. O dentro que muda com a chuva.


Está chovendo. As chuvas de final de ano (período curto de chuvas) parecem ter chegado e isso, espero, é boa notícia pras nossas vilas. A chuva traz possibilidades aos agricultores de subsistência e também traz desconforto e um certo perigo. Estamos torcendo para ter muita água caindo do céu para alimentar os girassóis em Kwakiliga e para que não seja água suficiente para inundar a shamba em Magoma. Queremos um pouco sem querer demais. Em Swahili dizemos mvua imeniesha, o que em tradução literal significa “está chovendo a chuva”.

Quando chove aqui na Tanzânia as pessoas se escondem, o que sempre me deixa triste já que tenho aquela ideia poética de que em sertão, água que cai do céu é recebida como presente. Os rios de lama dominam a paisagem (em terras inférteis a chuva não penetra no solo, fica na superfície formando barro) e as pessoas aqui não gostam de se sujar (dá tanto trabalho lavar roupa...).
Viajar fica (mais) difícil, pneus carecas derrapam daqui e de lá, pés descalços escorregam pelas trilhas. Com tanta água caindo do céu, as torneiras desacostumadas à fartura entopem-se de lama e folhas e falta água.

Eu sempre adorei a chuva e quando chove sinto meu corpo querendo se renovar. Parece que tudo que tenho pensado, todos esses sentimentos que se misturam, ficam prontos pra serem lavados e levados pela enxurrada. E aí é hora de mudança, de renovação – água na cabeça agita meus pensamentos.

Uma das partes difíceis do meu trabalho é que eu e ele somos um, e ele é maior do que eu. Então por mais que eu queira me deixar levar pelas águas tenho cada gota da chuva me cutucando e me lembrando que minha imagem é a imagem do que faço. Não posso correr na chuva e deixar a roupa ficar transparente, não posso me deixar escorregar na lama (ainda que às vezes eu caia sem querer mesmo) e ficar com cara de boba (ok, talvez isso eu não possa evitar).

Sempre gostei de chuva na casa da avó, minha avó querida que não tenho mais comigo em São Paulo e que por muito tempo morou em uma casa grande, com janelas venezianas por onde os pingos da chuva faziam sombra enquanto eu deitava em sua cama e ganhava cafuné.
Aqui na Tanzânia, amo a chuva na casa de Crazy Bibi, minha avó de Magoma, onde a água faz barulho quando bate nas telhas de plástico e interrompe nossa conversa ou me obriga a sorrir e fingir que continuo ouvindo-a enquanto dois rios se formam nas duas entradas da casa e nos ilham do lado de dentro.
Eu tento ir embora, correndo contra o tempo ou evitando ser alimentada, mas Crazy Bibi me convence a ficar mais um pouquinho pela trigésima vez e quando eu, depois de algumas horas, pareço irredutível (só pareço, porque Crazi Bibi sempre me ganha), vejo Crazy Bibi tirando um molho de chaves do meio de seus peitos e começando sua busca pela chave que gira a desproporcional fechadura do seu quartinho do lado de fora. Invariavelmente, depois de tentar cada uma da quase uma dúzia de chaves diversas vezes, ela consegue abrir a porta e se apressa em me entregar um guarda-chuva gigantesco. Muitas vezes, além do guarda-chuva, vejo seu gato de estimação, que ela carinhosamente chama de Paka (gato em Swahili), me olhando agradecido já que havia sido trancado por engano no depósito escuro.
(Aqui vale uma curta explicação: Crazy Bibi é a pessoa mais velha de Magoma, eu acho, quase 90 anos e nenhum dente na boca. Ela vive em uma casa muito simples, dois quartos  divididos por um corredor pequeno que serve como sala, cozinha, copa e estoque. No total a casa tem cinco portas, contando a do quartinho de fora em que vive o guarda-chuva e às vezes o gato Paka. Três das cinco portas são fechadas com fechaduras de madeira e não com chaves, o que sempre me deixou curiosa sobre que portas o molho de chaves que se esconde no peito de Crazi Bibi é capaz de abrir).

Eu defendo com alma e dentes a rotação de PCs no nosso modelo 2Seeds. Estamos adaptando os detalhes ano a ano para garantir a efetividade de nossos projetos e trazer ideias novas e pessoas com diferentes experiências para gerar inovação é parte essencial do processo. Mas eu, Ana, queria poder ir a Magoma sempre que tenho tempo (ou vontade, que é maior do que tempo) e ouvir a chuva sentada no banquinho de madeira mais baixo do mundo, quase no chão, na casa de Crazy Bibi.

Meu trabalho é maior do que eu e eu sou menor do que meu amor pela minha linda Magoma. Então ouço a chuva me chamando, mas respiro fundo e deixo a vida seguir seu caminho torcendo para que, amanhã, eu tenha a chance de mostrar a Crazy Bibi quantas saudades estou sentindo...

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O "como" e o "o que"


Não tenho entendido o tempo por aqui, parece que quanto mais desejo escrever mais ele desaparece da minha frente. A vida aqui na Tanzânia continua intensa, muita coisa acontecendo, o lado de dentro transbordando e eu batalhando de todos os lados. Tem tanto de mim pra ser dito, mas também tem muito sobre os projetos e sobre tudo que temos todos vivido. E é dos projetos que vou falar hoje.

Começando pelos continuing projects, aqueles que foram iniciados ano passado ou retrasado.

Magoma teve uma inundação na nossa querida shamba e tudo que estava plantado foi perdido. Todo o lugar virou um rio, digno de rafting, com as chuvas fora de época. Lindsay e Cíntia, as duas coordenadoras de projeto, tiveram seu momento e suas diferenças ao enxergar a água lavando o sonho. Paralelamente, desolação pelo que foi perdido e a chance de um novo começo brotaram da água, lágrimas se juntaram ao rio e a mais importante lição nasceu para elas com a experiência: aqui a resiliência é a maior qualidade de um ser humano. Saber cair, levantar e seguir em frente é não só essencial como a única maneira de seguir com a vida. Caímos, levantamos e seguimos, sempre em frente, afinal o destino final ilumina nosso caminho.
Um novo berçário de cebolas e pimentões foi plantado e os desafios não secam com a água que evapora. E os professores, de quem tanto reclamei aqui, se envolveram e nos ajudaram a levantar.

Kwakiliga teve seu turning point, quando Andrea e Sarah abraçaram o projeto que receberam, encararam suas deficiências como parte de sua missão e colocaram suas jembes (enxadas) nos ombros para distribuir sementes de girassol aos membros do grupo. Kwaks será, esperamos, uma vila produtora de lindas flores amarelas que quando murcharem e secarem estarão prontas para alimentar barrigas e sonhos (é a beleza das flores murchas que estamos buscando). O caminho ainda é longo, mas fomos mais longe nas últimas semanas do que nos últimos anos.

Lutindi se tornou um revés, temos que voltar para trás para seguir em frente, já que nosso grupo de agricultores de subsistência ainda se descobre e se esconde. As razões que uniram os membros do grupo sob o mesmo nome se mostraram equivocadas e estamos tentando descobrir a veia que conecta todos. Muitas vezes, em países como a Tanzânia, as pessoas se unem em torno de uma ideia não pela ideia em si, mas pela assistência que desejam receber. Como nosso trabalho é diferente, essa assistência financeira não será entregue a não ser que seja parte de um projeto consistente com objetivos de longo prazo. É essa consistência que estamos buscando em Lutindi.

Os projetos especializados seguem seu caminho aprendendo e analisando os treinamentos, as organizações e os mercados da Tanzânia. Korogwe ainda estuda a melhor maneira de conectar agricultores e proporcionar treinamentos necessários e efetivos. Kariakoo colecionou informações e analisou variações de mercado para entender os padrões produtivos e de consumo. Ambos estão trabalhando muito bem, mas ainda tateando para formular soluções.

Os projetos greenfield, que estão sendo iniciados este ano (Kijungumoto, Bombo Majimoto, Tabora e Bungu), estão em fase de seleção. A responsabilidade de escolher com quem trabalhar, como e em que pesa neste momento sobre os ombros dos PCs. Eles ainda não sabem que o que faz um projeto dar certo por aqui é o “como”, não o “o que”. Vamos aprendendo no caminho ;)

domingo, 9 de outubro de 2011

Alma, carne, mundo

Estou a escrever do escuro no quarto do Econolodge, hotel em Dar em que já me hospedei tantas vezes que tem um "que" de casa. As pessoas me conhecem, desde o staff até os que moram na pequena rua que leva ao hotel, e as figuras desdentadas e pobres não me assustam, ao contrário, me aceitam.

Dormi o dia inteiro, sensação que em 1 ano e meio de Tanzânia tive pela primeira vez. Estou em Dar esperando o Sam, que está em Pangani com a namorada e me encontrará aqui na terça para que eu finalmente a conheça pouco antes da sua partida, fruto de infinitas conversas em nossas noites de trabalho. Então seguiremos para Korogwe juntos, na quarta, e ele me ajudará a carregar minha mala, que mal consigo levantar de tão pesada, cheia de comida brasileira e quitutes saudáveis que me ajudarão a encontrar minha forma perdida (e contentar minha alma saudosa).

 

Estou no escuro porque quero, desta vez temos luz aqui em Dar, e estava a ler o blog do Gonçalo, amigo português que conheci em Nairobi e que se aproxima do final de uma viagem magnífica pela África. Confesso que sempre que leio seu blog sinto as formigas se mexendo na sola de meus pés e tenho muita vontade de reaver meu espírito mochileiro e seguir o sol. Aí respiro fundo e me lembro porque estou aqui, vejo algumas fotos de Magoma (sim, ainda dona do meu coração) e me aquieto. A verdade é que não sei por quanto tempo conseguirei me aquietar, mas minhas Havaianas sem sola têm me mantido muito firme na busca desse meu destino.

 

A viagem ao Brasil foi incrível e comer pão de queijo (duro, depois de 2 dias de viagem) no quarto do hotel me traz à boca o sabor do meu país. A última vez que estive no Brasil foi estranha, eu não estava em um bom momento e foi uma viagem de despedida: de Magoma, da minha avó, do meu trabalho como Coordenadora de Projeto e de uma imagem que eu tinha na minha cabeça de como seria voltar pra casa depois de tanto tempo. Infantilmente criamos conceitos de sucessos e fracassos e esperamos que apenas os sucessos sejam vistos quando regressamos de uma experiência tão definitiva. Ao olhar para o espelho e ver os fracassos refletidos senti vergonha e quis me esconder.

Só que o crescimento que vim viver na Tanzânia me ensinou o valor dos fracassos no caminho do sucesso e o que significa aprender, nem na escola nem no livro, mas na alma, na carne.

 

O Brasil é minha casa, finalmente sinto isso depois dos últimos dez dias. É o país cuja bandeira me enche os olhos de lágrimas e cujos defeitos me irritam acima de tudo. É minha saudades, meu sabor, minha música. Minha alma de brasileira em um corpo que chacoalha sem medo.

A Tanzânia é o país em que cumpro minha missão, em que me fiz aceitar e sou lenda, mais do que sou eu. É minha flexibilidade e meu tapa na cara, onde eu sou menos importante pra mim mesma – no bom e no mau sentido.

 

Meu coração está, neste escuro quarto de hotel, em algum lugar entre os dois mundos. As saudades apertam, o dever chama e eu cresço enquanto me sinto pequena e me escondo enquanto me exponho.

 

Aqui sou alma, sou carne e sou mundo.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Graduação em Magoma

Estou exausta e ainda tenho que fazer minha mala para a viagem ao
Brasil. Hoje foi meu último dia em Korogwe antes da viagem, amanhã
pela manhã vou pra Dar es Salaam para viajar no domingo. Hoje foi
também um dia muito especial e por mais cansada que eu esteja não
poderia deixar de dividi-lo com vocês.

Ontem choveu a noite inteira e hoje choveu boa parte do dia. Não
sabemos se o período curto de chuvas que deveria chegar em meio de
outubro veio mais cedo ou se toda esta chuva é um alarme falso e as
nuvens desaparecerão daqui a pouco. As pessoas estão correndo para as
shambas (sítios) para plantar já que muita gente (muita mesmo) não tem
comida em função das chuvas loucas que tivemos no começo do ano (a
chuva atrasou muito e quando veio foi demais e inconsistente).

Mas o que tornou o dia de hoje tão especial foi a graduação da 7ª
série em Magoma.

Eu havia me programado para ir à festa, que deveria começar às 10
horas, mas toda a chuva me deixou hesitante já que rios de lama
transbordam pela estrada em tempos de chuva. O resultado é que já eram
quase 10 horas quando me perguntei "você é uma mulher ou é um rato?",
montei Bwana Mtoto (carro da 2Seeds recém adquirido e recém
ressuscitado da oficina – nosso carro é velhinho, mas nós o amamos. O
nome significa Senhor Criança) e decidi encarar a estrada, confiante
na minha habilidade off-road. 45 minutos depois cheguei a Magoma, a
casa para qual eu tinha que ir antes de ir pra casa, e tive um dia de
felicidade em meio ao (delicioso) caos de Magoma.

A cerimônia que deveria começar às 10 horas estava atrasada (o que eu
esperava?) e eu tinha uma reunião com os coordenadores de projeto
greenfield aqui em Korogwe às 14h00. Às 13h00 vi uma sala de aula
simples e lindamente decorada (aproximadamente 3 horas de esforços dos
professores) e às 13h15 vi toda a decoração ser desmontada já que
aparentemente a sala era pequena demais para todos os presentes (ah
Tanzania...).

Enquanto isso os estudantes ensaiavam seus cantos vestidos em suas
melhores roupas. As meninas vestiam as saias laranjas (a maioria
emprestada) que são uniforme da escola secundária – algumas tinham
cabelos trançados ou pelo menos recém raspados. Os meninos vestiam
gravata com camisa social, muitos com sapatos lustrosos.

De todas as crianças que começam a escola, cerca de 50% se formam.
Deles, cerca de 30% devem ir para escola secundária e eu ficarei
surpresa se mais de 10% se formarem na escola secundária– queria muito
poder dizer que nosso projeto, 9 meses de idade, já é capaz de mudar
esses números, mas ainda temos muito trabalho pela frente pra colher
resultados diferentes.

A 7ª série da Kwata (escola primária de Magoma) teve força e garra pra
trabalhar com um sorriso no rosto, me ensinar Swahili e garantir
refeições na escola para 813 estudantes. Eles me inspiraram a cada
dia, me enlouqueceram incontáveis vezes, se encharcaram comigo
irrigando a shamba e calcularam lucro na aula de matemática. Crianças
como Henry Godfrey, as duas Marias, Aisha, Miriam e Issa me deram
motivos pra nunca desistir – eles nunca desistiram.

Bwana Mtoto saiu revigorado da viagem – se provou um carro pronto pra
encarar kijijini (vila). Eu saí emocionada da viagem desejando um
mundo de oportunidades para os estudantes que se despedem e um mundo
de esperança e garra para os que ficam. O projeto Magoma viu sua
primeira formatura (que venham muitas!) . As novas voluntárias tiveram
a chance de se apaixonar pelo projeto e de receber energia para
fazê-lo melhor.

Não são poucas as vezes que me pergunto "o que eu vim fazer aqui?". Em
dias como hoje a resposta é tão fácil que nem precisa de palavras pra
ficar clara.


Pp. Para fazer o dia ainda melhor eu também:

a) Visitei Crazy Bibi, a última avó que me restou (ainda que quase sem
dentes na boca), que amo com todo meu coração e apesar de velhinha
havia ido visitar sua filha (e consultar um médico – varizes e
glaucoma) em Morogoro (cidade a 6 horas de Magoma). O abraço que
ganhei de Crazy Bibi faz a vida valer a pena.
b) Conversei com Babu, meu avô com o qual falo todos os dias, mas de
quem sinto saudades todos os dias também.
c) Cheguei atrasada, mas participei da reunião com os projetos
greenfield aqui em Korogwe e pude trocar experiências com o barulhento
e alegre grupo de PCs.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Subindo e descendo montanhas

Faz muito tempo que não escrevo porque o trabalho tem ocupado cada
minuto de todos os meus dias. Não moro mais em Magoma e assumi minha
posição de Diretora de Desenvolvimento e Projetos em agosto. Agora são
9 projetos, 23 voluntários e 2 diretores aqui na Tanzânia. Estou
vivendo em Korogwe.

Escreverei mais de agora em diante e darei detalhes sobre cada
projeto, mas hoje quero me dedicar mais ao que tenho sentido do que ao
trabalho em si.

Ontem fui a Lutindi, vila que fica lindamente cravada no alto de uma
montanha. Desde a primeira viagem, ano passado com o time de Lutindi,
descer aquela montanha me faz pensar e me coloca a sentir as saudades,
a encarar as dúvidas, a lembrar os sonhos. Ano passado, o fim da tarde
escondeu as lágrimas que expunham as saudades de tudo que havia
deixado no Brasil, o medo e o frio na barriga, o susto por estar
realmente aqui.

Eu vim pra muito longe, mais longe que longe, fazer algo tão simples
como salvar o mundo – salvar um mundo. Parece coisa de filme quando
falamos assim...
Na parede do meu quarto em Korogwe pendurei minhas havaianas
sobreviventes de Magoma. A terra e o barro repuxaram a borracha, a
sola esburacou, o azul ficou meio branco e meio marrom. As havaianas
de Magoma me lembram quem eu sou, me lembram o que eu vivi e me
lembram por que estou aqui. As havaianas de Magoma são como eu na
Tanzânia: meio fora de forma, muitas cicatrizes do caminho adornando a
bandeirinha do Brasil e um cansaço que não se esconde, mas que não as
impede de estarem prontas pra mais um dia na shamba, pra mais uma
conversa em KiSwahili (ou KiSambaa), pra mais um pedra no caminho.
Prontas pra mais.

Na Tanzânia quando falta, falta, faz falta. Eu não sei muito sobre
muita coisa, mas aqui tenho que saber quem eu sou. E este eu é forte,
pra se encarar sozinho, pra entender as variações de sozinho, pra
viver sem. Tento inspirar as 23 pessoas que seguem meu caminho e às
vezes acho que consigo, às vezes falho. Na vida que escolhi, falhar é
cotidiano, é passo. Mas o vento que a moto joga no meu rosto também
lembra que no meio das falhas surgem os acertos e que no meio das
falhas eu não falhei quando vim pra cá. 813 crianças comem todos os
dias os frutos de 9 meses de falhas. Minhas falhas estão enchendo
barrigas há 7 meses. Que venham mais pedras.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Uma janela para um outro mundo: nem tão perto, nem tão distante, logo ali.




Tenho tanto a escrever e tanta experiência a compartilhar que sou perseguida pela sensação de que estou devendo estórias - e estou. Neste momento de transição os sentimentos também querem ser escritos, assim como as experiências na minha linda Magoma. Tem muito acontecendo do lado de dentro e do lado de fora.

Dia 10 de junho tivemos um momento mágico em Magoma, o festival de cinema Tanz Cine Brazil.
Eu percorri a vila convidando as pessoas para comparecerem ao mercado às 7 da noite e assistirem cinema brasileiro: “cinema, como uma TV grandona, venham que vocês vão gostar”.
Depois de mobilizar a equipe do festival prometendo uma noite Cinema Paradiso, eu estava ansiosa e um pouco receosa de que não tivéssemos público. Para ajudar teríamos concorrência, já que a mesquita decidiu fazer uma semana de pregação ao ar livre passando filmes religiosos sempre no último volume e com péssima qualidade de áudio nos alto-falantes (vida de Magoma é assim, som sempre muito alto, qualidade sempre muito baixa e nenhuma chance de cada pessoa guardar o que acredita e o que quer ouvir para si mesma).

Começou a escurecer enquanto preparávamos o cinema. Projetor e tela vindos dos escritórios de agricultura e educação de Korogwe (Mr. Mjema e Mr. Shemzighwa sempre me apoiando incondicionalmente); Babu, Mr. Bodo e Mw. Mary (a nova diretora da escola), incansáveis, supervisionando a preparação; a produção e eu buscando bancos na igreja, cadeiras na ADP, um tapetão na máquina de farinha e diversas outras coisas com os vizinhos; as crianças trazendo baldes para iluminação com velas – em Magoma a gente nunca tem tudo que precisa, cada coisa vem de um canto, todo evento é um evento comunitário.

A exibição começou com meia hora de atraso:
(Animação escolhida a dedo por não ter falas e mostrar um pouco do nosso nordeste; sertão brasileiro nos olhos do sertão tanzaniano)

Olhei em volta e vi cerca de 400 pessoas sentadas entre o tapetão, os bancos e as cadeiras, sorrindo e dando risada. O coração pulou...

A sessão continuou com:

Ainda que tanto Sambatown como Naiá sejam muito poéticos e carreguem analogias que não se traduzem facilmente para a cultura tanzaniana, até aqui eu sabia que as pessoas adorariam; selecionamos estes filmes para mostrar um pouco da nossa dança e da nossa floresta, todos quase sem diálogos.  Já a partir daqui teríamos uma nova barreira, a língua: em Magoma as pessoas não falam inglês e muito menos português. Os filmes estavam em português, obviamente, e com legendas em inglês.

(Momento “agora é que a vaca foi pro brejo” quando nos demos conta que as legendas deste filme estavam em português...)


As legendas em português (?!) e inglês não impediram que minha linda e doce Magoma aproveitasse cada minuto do festival. As 400 pessoas permaneceram com os olhos fixos na tela durante as três horas de sessão e nós adaptamos, desconstruindo o conceito de festival de cinema e mostrando trechos de diversos filmes para ter variedade na tela e nos pensamentos. E funcionou.
A arte é universal. E Magoma ganhou uma janela para o mundo, ou pelo menos para um outro mundo: nem tão perto, nem tão distante, logo ali.

Momentos especiais:
  1. Pessoas vindas de Mkwajuni, a vila mais distante que forma Magoma, curtiram 3 horas de festival mesmo tendo que atravessar o rio pra ir embora pra casa;
  2. Os senhores e senhoras de Magoma, alguns apoiados em bengalas, estavam lá;
  3. Mostrar Eu Tu Eles foi um momento especial para mim, que quis fazê-lo desde que cheguei a Magoma. As risadas veladas das mamas, únicas capazes de entender as entrelinhas das intenções sexuais do filme, foram deliciosas;
  4. O ahhhhhhhhh que Igor (um dos produtores do festival) e eu ganhamos ao parar Eu Tu Eles no momento da primeira cena de sexo mostra que Magoma também tem malícia;
  5. As risadas que cada beijo mostrado na tela arrancou da inocente platéia (as pessoas não beijam na Tanzânia);
  6. Pessoas me perguntando no dia seguinte sobre como a índia Naiá se tornou uma planta e como é essa planta (lenda da vitória-régia) mostra que a arte comunica sem palavras.
  7. A lua cheia fechou o cenário e iluminou o caminho de todos na volta pra casa.

A ligação do sertão brasileiro com o sertão de Magoma se mostrou tão forte que até mesmo a minha experiência aqui ganhou um novo sentido. As pessoas puderam se conectar com uma realidade parecida a um oceano de distância. Minha alma, meio brasileira meio magomense, pode conectar os dois mundos que formam quem eu sou neste momento.

Brasil e Magoma.

Pode parecer que não há nada em comum, mas somos apenas pessoas dividindo sonhos e espiando por nossas janelas para o mundo. Dia 10 de junho estivemos juntos. Fomos um.

Pp. Obrigada Cecília Queiroz, Estefania Chaves, Ronaldo Vieira, Igor Pirola, Sebastião Braga e Ramadham!

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Bombo Majimoto

Foi dentro da minha nova função, que ainda que se torne oficial apenas em agosto venho exercendo desde janeiro, que selecionei com nossos parceiros locais as vilas para os novos projetos. Uma dessas vilas se chama Bombo Majimoto.

Bombo fica perto de Magoma (cerca de 16 km – lembrando que na Tanzânia a distância varia de acordo com quem a mede), mas na região das montanhas, chamada Kizara. É uma vila isolada em que crianças fugiram de mim em minha primeira visita porque nunca haviam visto uma pessoa branca (e eu jamais me descreveria como branca sendo brasileira).
O lugar é lindo, no sopé da montanha. O nome surgiu pela nascente de água que abastece toda a vila. A água deveria ser quente (maji = água, moto = quente), mas todas as vezes que estive lá encontrei água fresca e fria.

Quando os diretores da 2Seeds vieram visitar a Tanzânia em fevereiro, os levei a Bombo Majimoto. Apesar de eu tê-los avisado com antecedência que deveriam esperar uma vila pobre (todas as casas são de pau-a-pique), com uma comunidade muito simples (2.000 agricultores de subsistência), suas expectativas foram ultrapassadas – para pior. Toda a comunidade estava nos esperando e celebrando, desde a manhã, nossa visita. Considerando que chegamos no meio da tarde, nos deparamos com uma comunidade bêbada...

Bombo quase perdeu a chance de receber um projeto pelo excesso de felicidade que o vislumbre de um projeto trouxe para a comunidade. Eu batalhei pela vila: depois de conversar com nossos parceiros locais e ter sua garantia de que o lugar é seguro, passei três dias em Bombo dormindo em casa de pau-a-pique e tomando banho ao relento, para testar as condições de segurança. E me apaixonei.
Meu fim de semana em Bombo aconteceu no meio da estação da fome que assola muitas de nossas vilas, de março a junho, todos os anos. Em Bombo eu fui para a shamba procurar vegetais com Mama Lukia para termos almoço, dividi uma espiga de milho em três e carreguei os vegetais e o milho na cabeça.
A comunidade, com toda a sua pobreza e isolamento, expele doçura por todos os seus poros. Meu nome em Kisambaa (língua local, da tribo Sambaa) chegou a Bombo, e por onde ando ouço Mamuugu ou Makihio, as duas variações para “mãe de todas as famílias”.

Minha felicidade ao voltar a Bombo semana passada carregando a notícia de que começaremos um projeto por lá me embriagou. Não precisei beber pombe (pinga local, fermentada de cana-de-açúcar ou coco) para sair de Bombo na garupa da pikipiki (moto táxi) com água escorrendo pelos olhos escondida debaixo dos óculos escuros.
Um brinde a Bombo!

Pp. O time que chega a Bombo viverá em casa de alvenaria, com forro no teto e todo o conforto possível para a pequena vila. Há apenas uma casa assim em toda a vila, que está sendo finalizada para recebê-los.

domingo, 29 de maio de 2011

Novos desafios - de coordenadora a diretora


Diretora de Desenvolvimento de Projetos. Assumo aqui minha nova função dentro da 2Seeds.
A partir de agosto, receberemos 24 novos coordenadores de projeto, que eu e Sam coordenaremos. Serão nove projetos; estamos buscando trabalhar em toda a cadeia de valor para garantir efetividade nos resultados.

7 projetos em vilas
4 projetos greenfield: greenfield é o termo usado para projetos em aberto, em que os times chegarão à Tanzânia e definirão com a comunidade em que vão trabalhar. Foi o que eu e Kristina fizemos ano passado quando chegamos a Magoma e o que novos times farão.
3 projetos focados: Magoma, Lutindi e Kwakiliga, começados em 2010, serão consolidados e expandidos. Novas visões em campo para os desafios que persistem e para todos os novos desafios que surgirão, além da chance de crescer.

Os sete projetos em vilas foram divididos por suas características geográficas:
Montanhas: Lutindi (focado) e Bungu (greenfield)
Vale: Magoma (focado), Kijungumoto (greenfield) e Bombo Majimoto (greenfield)
Planícies: Kwakiliga (focado) e Tabora ya Korogwe (greenfield)

2 projetos especializados
Para trabalhar em toda a cadeia de valor, acreditamos que, além de ajudar a comunidade a se organizar e enxergar claramente suas oportunidades e desafios, precisamos oferecer treinamento e ajudá-los a se conectar com mercados. Muitas vezes as pessoas não têm uma visão clara de suas dificuldades; não é difícil conversar com agricultores que dirão que não podem trabalhar bem sem uma bomba de irrigação em vilas sem acesso a água (se eles tiverem a bomba, bombearão água de onde?). Seus anseios se baseiam nos sonhos de máquinas e agricultura de pouco trabalho, como supostamente existe nos países desenvolvidos. O treinamento os ajudará a cultivar melhor com as ferramentas disponíveis, a planejar agricultura como um negócio que lhes traga retorno e a verificar quais ferramentas podem aumentar sua produtividade e seu lucro.

O mercado na Tanzânia é interessantíssimo. Uma garrafa de água, por exemplo, terá exatamente o mesmo preço em qualquer loja de qualquer cidade ou vila. Não existe concorrência, não existe atribuição de valor. 
Para produtos agrícolas isso muda um pouco e o preço varia com a qualidade do produto. O problema é que os agricultores vendem seus produtos para compradores intermediários que viajam das cidades para as vilas enchendo seus caminhões ou enviando produtos pelos ônibus urbanos (ônibus transportam absolutamente tudo na Tanzânia). Normalmente, o agricultor não sabe onde seus produtos serão vendidos ou por que preço. E os intermediários não perdem a chance de explorar esta ignorância (ainda que não passem de maus comerciantes que tampouco fazem muito dinheiro com o processo).

Para combater essas duas frentes, teremos os seguintes projetos:

Korogwe: vila central onde todos os times baseados em vilas se reúnem quinzenalmente e compram suprimentos. Também é nosso centro de transporte.
Em Korogwe iniciaremos um centro de treinamento com plantações demonstrativas (como uma fazenda-escola). Ali poderemos trabalhar em sala de aula e com o pé na terra, ajudando os agricultores a produzir maiores quantidades e com melhor qualidade. Além disso, os agricultores poderão se conectar e trocar informações, já que muitas vezes enfrentam dificuldades parecidas e podem se ajudar na busca de soluções.

Kariakoo: o maior mercado da Tanzânia. Kariakoo está localizado em Dar es Salaam e recebe produtos de todo o país além de ser o centro exportador para países próximos e ilhas como Madagascar. Acreditamos que se os agricultores tiverem acesso a informações sobre os preços pagos por seus produtos, terão a chance de tomar decisões para obter lucro e deixar a linha da pobreza.

Tanzânia, mais um ano! Novos desafios batendo à janela =)

quarta-feira, 18 de maio de 2011

A água que sai do meu balde

Posso carregar o balde na cabeça, se treinar bastante. A ginga do meu quadril não alcançou meu pescoço, o balde não “assenta”, mas um dia vai (vai?). Faço planilhas no Excel, desenho logos e tenho um dicionário. Faço um quadrado com a mão direita enquanto a esquerda sobe a desce ao som de tirolirolá. Você equilibra o balde; eu danço samba.

A gente quer fazer o que o outro faz, quer se mostrar forte, quer saber e poder. Sim, eu consigo beber água suja sem ficar doente, aguentar os mosquitos sem pegar malária e tirar a sanguessuga da perna sem gritar a dar pití. Trabalho com a enxada (não tão bem como você), caminho na lama de chinelo (quase nunca caio) e consigo comer feijão com a mão (direita). Mas o mais legal deste tempo que estamos juntos é dividir, é ser diferente. Vim pra viver seu mundo e pra te mostrar um pedaço do meu.

Sim, sou mais branca que você (que saco!). Sim, falo várias línguas e viajei o mundo; tenho um MBA e estudei pacas. Se eu precisar posso cortar lenha e cozinhar sobre pedras, mas a verdade é que não preciso. Meu valor está no que eu sou; não nos baldes que carrego na cabeça. Seu valor está no que é; não na magreza do seu corpo e no ugali (pasta de milho) que te faz feliz exatamente do mesmo jeito todos os dias.

Não, eu não quero casar com você (ou com ele) e dificilmente vou levar alguém pro Brasil comigo (mais difícil ainda te levar pra Europa). Mas isso porque em outra dimensão minha vida também não é fácil; as decisões se sobrepõem e dominam os dias. A real é que neste momento não sei nem se eu vou pro Brasil ou pra Europa (ou pra qualquer lugar).

Você quer sair do seu mundo, eu quero achar o meu. Me joguei, me estabaquei, chorei, levantei, sonhei, mudei e decidi ser feliz (será que consigo?).
Assisti a fome do mundo. Comi a fome do mundo. Não consigo digerir a fome do mundo, tá pesando dentro de mim, me deixou gorda. Preciso fazer alguma coisa como preciso respirar.

Não quero ser expectadora, quero que você coma comida colorida todos os dias. Não quero ser expectadora, quero que você coma todos os dias. Quero te alimentar de esperança e de vontade de viver, quero que você se alimente, também de esperança, sem precisar de mim segurando a colher e fazendo aviãozinho (mas adoro fazer aviãozinho!).


Hey você aí do outro lado! Minha bandeira não é azul, vermelha e branca, meu coração não pula com seus presidentes (nem com os meus). Não gosto de guerras, não entendo o que te move. Preciso?
Discordo dos prefixos e das diferenças que se enfatizam pelo aparente, me alimento das diferenças de alma. O que te move é diferente do que me move e ainda assim nos movemos juntos.


Minha língua é diferente da sua e ainda assim nos entendemos. Minha pele é diferente da sua e ainda assim nos amamos (ou não). Você acredita no que eu não acredito, mas eu acredito em você. A água que sai do meu balde é tão marrom quanto a que sai do seu.

sábado, 23 de abril de 2011

O sucesso se mede em baldes





Quando começamos a trabalhar com a escola aqui em Magoma e pensamos em como viabilizar uma shamba de frutas e legumes e um programa de refeições, ouvimos quase que unanimemente que precisávamos de uma pumping machine (uma máquina movida à gasolina que puxa a água do rio e a conduz por longas mangueiras azuis para irrigar a plantação). Após muito avaliar, decidimos comprar a poderosa máquina, que viabilizaria todos os nossos sonhos.

Como tudo na vida, sonhos e realidade são diferentes e ainda que nossa pumping machine tenha sido indispensável para a primeira temporada que cultivamos, descobrimos que usá-la sai mais caro do que o projetado (cerca de 9 litros de gasolina para cada rodada de irrigação, a TSH2.000/ litro – US$1,4) e exige muito esforço. As mangueiras devem ser carregadas da forma correta, para que não destruam a plantação no caminho, e ainda que eu tenha me divertido (e muito!) me molhando e me sujando de lama enquanto as carregávamos de um lado para o outro, não posso dizer que seja um trabalho leve.

Desde que começamos o programa de merenda escolar os alunos entenderam, não em palavras, mas em atitudes, o que estamos fazendo aqui. Eles também enxergaram a relação que existe entre o seu trabalho na shamba e as suas refeições.
Hoje conseguimos dividir a shamba entre quatro culturas: pimentões verdes (3ª e 6ª séries), melancias (5ª série), cebolas (4ª série) e gengibre (6ª série). Cada aluno é responsável por uma linha onde colocou uma bandeirola feita de bambu e um papelão com seu nome. Este estudante é responsável por tudo que diz respeito à sua linha, irrigá-la, arrancar as ervas daninhas, sombrear as plantas se o sol estiver muito forte. E estamos batalhando para que eles também sejam responsáveis por avaliar e tomar decisões, o conceito mais difícil na cultura hierárquica tanzaniana.

Hoje, quando vou à shamba ao final da tarde, tenho a mais linda vista: centenas de estudantes estão lá e a melhor parte: estão sorrindo. Eles vão ao rio, enchem os baldes de água e irrigam sua área (construímos uma proteção no rio para manter os crocodilos longe dos estudantes). E como decidiram que querem comer arroz na escola em junho, estão fazendo um excelente trabalho.

Ah! A pumping machine? Estamos pensando em outros destinos para ela. Sem usá-la nada disso estaria acontecendo, já que não teríamos um programa de merenda escolar (e este foi o estopim para que os estudantes se dedicassem à shamba). Mas hoje conseguimos irrigar de forma mais efetiva e barata, pra não mencionar menos poluente.

O sucesso aqui em Magoma, se mede em baldes :)