sábado, 19 de novembro de 2011

As mudanças que chegam com o vento. O dentro que muda com a chuva.


Está chovendo. As chuvas de final de ano (período curto de chuvas) parecem ter chegado e isso, espero, é boa notícia pras nossas vilas. A chuva traz possibilidades aos agricultores de subsistência e também traz desconforto e um certo perigo. Estamos torcendo para ter muita água caindo do céu para alimentar os girassóis em Kwakiliga e para que não seja água suficiente para inundar a shamba em Magoma. Queremos um pouco sem querer demais. Em Swahili dizemos mvua imeniesha, o que em tradução literal significa “está chovendo a chuva”.

Quando chove aqui na Tanzânia as pessoas se escondem, o que sempre me deixa triste já que tenho aquela ideia poética de que em sertão, água que cai do céu é recebida como presente. Os rios de lama dominam a paisagem (em terras inférteis a chuva não penetra no solo, fica na superfície formando barro) e as pessoas aqui não gostam de se sujar (dá tanto trabalho lavar roupa...).
Viajar fica (mais) difícil, pneus carecas derrapam daqui e de lá, pés descalços escorregam pelas trilhas. Com tanta água caindo do céu, as torneiras desacostumadas à fartura entopem-se de lama e folhas e falta água.

Eu sempre adorei a chuva e quando chove sinto meu corpo querendo se renovar. Parece que tudo que tenho pensado, todos esses sentimentos que se misturam, ficam prontos pra serem lavados e levados pela enxurrada. E aí é hora de mudança, de renovação – água na cabeça agita meus pensamentos.

Uma das partes difíceis do meu trabalho é que eu e ele somos um, e ele é maior do que eu. Então por mais que eu queira me deixar levar pelas águas tenho cada gota da chuva me cutucando e me lembrando que minha imagem é a imagem do que faço. Não posso correr na chuva e deixar a roupa ficar transparente, não posso me deixar escorregar na lama (ainda que às vezes eu caia sem querer mesmo) e ficar com cara de boba (ok, talvez isso eu não possa evitar).

Sempre gostei de chuva na casa da avó, minha avó querida que não tenho mais comigo em São Paulo e que por muito tempo morou em uma casa grande, com janelas venezianas por onde os pingos da chuva faziam sombra enquanto eu deitava em sua cama e ganhava cafuné.
Aqui na Tanzânia, amo a chuva na casa de Crazy Bibi, minha avó de Magoma, onde a água faz barulho quando bate nas telhas de plástico e interrompe nossa conversa ou me obriga a sorrir e fingir que continuo ouvindo-a enquanto dois rios se formam nas duas entradas da casa e nos ilham do lado de dentro.
Eu tento ir embora, correndo contra o tempo ou evitando ser alimentada, mas Crazy Bibi me convence a ficar mais um pouquinho pela trigésima vez e quando eu, depois de algumas horas, pareço irredutível (só pareço, porque Crazi Bibi sempre me ganha), vejo Crazy Bibi tirando um molho de chaves do meio de seus peitos e começando sua busca pela chave que gira a desproporcional fechadura do seu quartinho do lado de fora. Invariavelmente, depois de tentar cada uma da quase uma dúzia de chaves diversas vezes, ela consegue abrir a porta e se apressa em me entregar um guarda-chuva gigantesco. Muitas vezes, além do guarda-chuva, vejo seu gato de estimação, que ela carinhosamente chama de Paka (gato em Swahili), me olhando agradecido já que havia sido trancado por engano no depósito escuro.
(Aqui vale uma curta explicação: Crazy Bibi é a pessoa mais velha de Magoma, eu acho, quase 90 anos e nenhum dente na boca. Ela vive em uma casa muito simples, dois quartos  divididos por um corredor pequeno que serve como sala, cozinha, copa e estoque. No total a casa tem cinco portas, contando a do quartinho de fora em que vive o guarda-chuva e às vezes o gato Paka. Três das cinco portas são fechadas com fechaduras de madeira e não com chaves, o que sempre me deixou curiosa sobre que portas o molho de chaves que se esconde no peito de Crazi Bibi é capaz de abrir).

Eu defendo com alma e dentes a rotação de PCs no nosso modelo 2Seeds. Estamos adaptando os detalhes ano a ano para garantir a efetividade de nossos projetos e trazer ideias novas e pessoas com diferentes experiências para gerar inovação é parte essencial do processo. Mas eu, Ana, queria poder ir a Magoma sempre que tenho tempo (ou vontade, que é maior do que tempo) e ouvir a chuva sentada no banquinho de madeira mais baixo do mundo, quase no chão, na casa de Crazy Bibi.

Meu trabalho é maior do que eu e eu sou menor do que meu amor pela minha linda Magoma. Então ouço a chuva me chamando, mas respiro fundo e deixo a vida seguir seu caminho torcendo para que, amanhã, eu tenha a chance de mostrar a Crazy Bibi quantas saudades estou sentindo...

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