No geral os estudantes nos enchem de orgulho. São olhinhos curiosos e sorrisos automáticos cada vez que entramos na sala de aula. Quando não há aula, como em grande parte desta semana, avisamos aos alunos quando pretendemos trabalhar com suas classes e temos estudantes esperando pacientemente por nossas atividades, às vezes por algumas horas já que temos trabalhado com três ou quatro classes por dia para driblar a agenda maluca da escola.
Esta semana a 1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries foram à escola apenas por nossa causa :)
Em todo grupo existem estrelas. Temos as nossas aqui.
Daniel está sempre por perto. É o garoto que escala o coqueiro para pegar cocos para todos nós no fim de tarde. Mesmo quando não o selecionamos para uma determinada atividade (tentamos rotacionar os estudantes) ele está lá.
O garoto tem sempre tanta energia!
Ele não carrega a bomba de irrigação, ele corre com a bomba sobre a cabeça ladeira acima. Ele não puxa as mangueiras cheias de água, ele corre 20m puxando as mangueiras. Ele não vai desligar a bomba, ele salta de um monte de terra para outro até chegar ao rio.
Nos surpreendemos quando dividimos os times de irrigação com estudantes da 5ª e 6ª séries e ele não estava lá. Entendemos mais tarde, no mesmo dia, ao levar a 3ª série para uma atividade e encontrá-lo na sala de aula.
Daniel trabalha na plantação de arroz do irmão, cuida de um rebanho de cabras todas as tardes, vai à escola e encontra tempo para trabalhar na nossa plantação de melancias (e escalar o coqueiro para nos oferecer cocos).
Claro que o convidamos a participar de um dos times de irrigação. Claro que ele aceitou imediatamente (esta semana esteve irrigando não apenas com seu time, mas com todos os outros também. Na verdade ele está irrigando agora mesmo, enquanto escrevo este blog).
A surpresa maior veio ontem à noite. Eu tinha certeza que Daniel era um garoto grande de 13 anos. Ontem estávamos voltando da shamba depois de transplantar o ngogwe (berinjela africana), noite chegando.
Eu: "Daniel, una miaka mingapi?" (Daniel, quantos anos você tem?).
Daniel: "Kumi na saba" (17).
Kristina e eu: "No way, when were you born?" (Sem chance, quando você nasceu?).
Daniel: 1993.
Daniel não é um garoto grande de 13 anos. É um garoto pequeno de 17 anos. E isso mudou todas as minhas perspectivas.
Não sei em detalhes sua história ou porque ele ainda está na 3ª série. Tenho certeza que não teve a oportunidade de estudar por muitos anos e o admiro ainda mais por não ter vergonha de ir à escola em uma turma oito anos mais nova. Mais do que isso, não reclamou ao desenhar sua escola dos sonhos, atividade que propusemos à 3ª série.
Frequentemente vemos os garotos trabalhando na shamba e temos a sensação de estar rodeadas por gigantes. Quando voltamos à escola e os temos em uniformes percebemos que são apenas crianças, e crianças pequenas.
Kristina e eu tomamos café com Mzee Francis na varanda da máquina de farinha ontem à noite. Esta não foi uma semana fácil, tivemos problemas sérios na quarta e estamos exaustas. Mas sorrimos ao pensar que é para Daniel que estamos trabalhando tanto. Para um garoto como ele, que não teve oportunidades, mas as agarra quando elas surgem. Para que sua escola dos sonhos aconteça e para que seus sonhos voem muito além das paredes desbotadas da sala de aula.
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
sábado, 20 de novembro de 2010
Designer em Magoma
Não me sentia tão designer desde que cheguei a Magoma.
Tin fez aniversário duas semanas atrás e propus que celebrássemos com presentes criativos, feitos por cada um de nós. Meu presente para ela foi uma apresentação com fotos contando nossa estória em Magoma e a maneira nada linear como nos tornamos grandes amigas.
Tiro fotos todo o tempo e costumava mostrar as fotos para as crianças no visor da câmera, mas tive que repensar esta estratégia ao longo das últimas semanas.
Mostrar as fotos para as crianças causa um tumulto sem fim, interrompe a aula e o trabalho na shamba e é impossível quando o grupo tem dezenas de pares de olhos curiosos (situação freqüente em uma escola que tem 813 alunos divididos em uma classe para cada série).
Por isso criei algumas apresentações com fotos, para enviar aos patrocinadores do projeto no Brasil e nos EUA e para mostrar às crianças, professores, pais e parceiros tanzanianos.
Confesso que me enchi de orgulho quando Mwalimu chorou vendo a apresentação. E que me deliciei com a molecada se identificando nas fotos.
Tin chega de mansinho quando estamos muito cansadas (normalmente começando a preparar a atividade das 7h30 da manhã às 2h00 da madrugada): "Acho que preciso de um vídeo motivacional". Coloco a apresentação de slides pra rodar rapidamente e ficamos quietinhas olhando atentamente as fotos, lembrando porque vale à pena dormir às 4h00 e acordar às 6h00.
Irrigar é cool. Irrigar tem que ser cool.
Irrigation Membership Cards organizam os estudantes e lhes mostra sua importância dentro do time. Mapa da shamba, com maquetes de crocodilos ilustrando o rio e coqueiros, mostra as áreas de irrigação e nos dá informação para analisar nosso desempenho (foi assim que contamos 1250 plantinhas crescendo e decidimos quais áreas devemos replantar).
Estamos criando soluções visuais para cada uma de nossas necessidades. E a respostas têm sido fantásticas quando pintamos placas para as shambas, desenhamos um gráfico sobre o tempo de decomposição de resíduos (ainda que o pneu desenhado pela Kristina pareça qualquer coisa no mundo menos um pneu) e montamos um calendário de irrigação organizado por cores ("você não é inteligente, você é um gênio" disse Mwalimu).
E minha veia designer se orgulha dos resultados e deseja colorir muito mais que folhas de papel.
Tin fez aniversário duas semanas atrás e propus que celebrássemos com presentes criativos, feitos por cada um de nós. Meu presente para ela foi uma apresentação com fotos contando nossa estória em Magoma e a maneira nada linear como nos tornamos grandes amigas.
Tiro fotos todo o tempo e costumava mostrar as fotos para as crianças no visor da câmera, mas tive que repensar esta estratégia ao longo das últimas semanas.
Mostrar as fotos para as crianças causa um tumulto sem fim, interrompe a aula e o trabalho na shamba e é impossível quando o grupo tem dezenas de pares de olhos curiosos (situação freqüente em uma escola que tem 813 alunos divididos em uma classe para cada série).
Por isso criei algumas apresentações com fotos, para enviar aos patrocinadores do projeto no Brasil e nos EUA e para mostrar às crianças, professores, pais e parceiros tanzanianos.
Confesso que me enchi de orgulho quando Mwalimu chorou vendo a apresentação. E que me deliciei com a molecada se identificando nas fotos.
Tin chega de mansinho quando estamos muito cansadas (normalmente começando a preparar a atividade das 7h30 da manhã às 2h00 da madrugada): "Acho que preciso de um vídeo motivacional". Coloco a apresentação de slides pra rodar rapidamente e ficamos quietinhas olhando atentamente as fotos, lembrando porque vale à pena dormir às 4h00 e acordar às 6h00.
Irrigar é cool. Irrigar tem que ser cool.
Irrigation Membership Cards organizam os estudantes e lhes mostra sua importância dentro do time. Mapa da shamba, com maquetes de crocodilos ilustrando o rio e coqueiros, mostra as áreas de irrigação e nos dá informação para analisar nosso desempenho (foi assim que contamos 1250 plantinhas crescendo e decidimos quais áreas devemos replantar).
Estamos criando soluções visuais para cada uma de nossas necessidades. E a respostas têm sido fantásticas quando pintamos placas para as shambas, desenhamos um gráfico sobre o tempo de decomposição de resíduos (ainda que o pneu desenhado pela Kristina pareça qualquer coisa no mundo menos um pneu) e montamos um calendário de irrigação organizado por cores ("você não é inteligente, você é um gênio" disse Mwalimu).
E minha veia designer se orgulha dos resultados e deseja colorir muito mais que folhas de papel.
Novidades da shamba
Choveu em Magoma!
Pela primeira vez desde que plantamos nossas melancias tivemos praticamente uma semana de chuva constante. E temos flores brotando nos pés de melancia, sinal de frutas a caminho :)
Segunda-feira dividimos times de irrigação, com carteirinha com foto e cores dividindo o trabalho. Um dos nossos maiores desafios tem sido encontrar um equilíbrio entre educação e lucro, os dois objetivos que nos movem. Os estudantes devem aprender para que tenham condições de levar o conhecimento para suas vidas. A shamba deve dar lucro para implementarmos o Programa de Alimentação no início do ano.
Depois de um mês testando abordagens diferentes e fazendo as correções necessárias, chegamos a uma fórmula em que os estudantes irrigam três vezes por semana, das 7h00 às 10h00, e trabalhadores contratados irrigam três vezes por semana, das 16h00 às 19h00.
A shamba tem nove fileiras de melancias que foram divididas em três áreas. Cada grupo (times A, B e C) é responsável por um conjunto de três fileiras (A, B e C) e trabalha na terra uma vez por semana. Com isso garantimos revezamento entre estudantes para que o trabalho seja dividido com justiça e todos os grupos tenham as aulas regulares na escola além do aprendizado prático na terra.
Para tornar o trabalho cool fizemos Irrigation Membership Cards para os estudantes, com suas fotos, cores para os times e um pequeno lembrete do que deve ser observado no trabalho na shamba.
Mas, lembrando o começo deste blog, choveu esta semana. Dividimos os grupos, mas não houve necessidade de irrigação (o que foi ótimo em semana de provas na escola). As cores, mapas e todo o esquema visual que criamos devem ganhar os holofotes semana que vem.
Pp. A chuva nos presenteou com água marrom em Magoma. Fato que a água nunca foi transparente. Fato que os banhos sempre foram de caneca. Mas o que fazer quando a água está tão marrom que não conseguimos ver o fundo da caneca quando vamos tomar banho?
Pela primeira vez desde que plantamos nossas melancias tivemos praticamente uma semana de chuva constante. E temos flores brotando nos pés de melancia, sinal de frutas a caminho :)
Segunda-feira dividimos times de irrigação, com carteirinha com foto e cores dividindo o trabalho. Um dos nossos maiores desafios tem sido encontrar um equilíbrio entre educação e lucro, os dois objetivos que nos movem. Os estudantes devem aprender para que tenham condições de levar o conhecimento para suas vidas. A shamba deve dar lucro para implementarmos o Programa de Alimentação no início do ano.
Depois de um mês testando abordagens diferentes e fazendo as correções necessárias, chegamos a uma fórmula em que os estudantes irrigam três vezes por semana, das 7h00 às 10h00, e trabalhadores contratados irrigam três vezes por semana, das 16h00 às 19h00.
A shamba tem nove fileiras de melancias que foram divididas em três áreas. Cada grupo (times A, B e C) é responsável por um conjunto de três fileiras (A, B e C) e trabalha na terra uma vez por semana. Com isso garantimos revezamento entre estudantes para que o trabalho seja dividido com justiça e todos os grupos tenham as aulas regulares na escola além do aprendizado prático na terra.
Para tornar o trabalho cool fizemos Irrigation Membership Cards para os estudantes, com suas fotos, cores para os times e um pequeno lembrete do que deve ser observado no trabalho na shamba.
Mas, lembrando o começo deste blog, choveu esta semana. Dividimos os grupos, mas não houve necessidade de irrigação (o que foi ótimo em semana de provas na escola). As cores, mapas e todo o esquema visual que criamos devem ganhar os holofotes semana que vem.
Pp. A chuva nos presenteou com água marrom em Magoma. Fato que a água nunca foi transparente. Fato que os banhos sempre foram de caneca. Mas o que fazer quando a água está tão marrom que não conseguimos ver o fundo da caneca quando vamos tomar banho?
sexta-feira, 12 de novembro de 2010
1 momentum para 813 pares de olhinhos
Foi o cenário abaixo que encontramos na escola e confesso que isso nos deixa enlouquecidas (pra manter a educação), mas também nos enche de motivação pra continuar trabalhando.
As crianças comemoram cada vez que entramos na sala de aula. Os sorrisos se espalham e os olhinhos pequeninos brilham, comovente.
Imagino como elas se sentem tendo as duas mulheres mais cool de Magoma as "ensinando" (elas nos consideram professoras). Eu sei que nós não somos tão legais assim, mas para aquelas crianças somos Dada Ana e Dada Kristina, mulheres que vieram de muito longe (verdade) e escolheram gastar suas horas e energias trabalhando na escola (verdade também). E todo mzungu é especial (mentira).
Aliás, esse status mzungu deve ser muito similar ao Big Brother: de repente todo mundo te observa, de repente você é super interessante, de repente você volta pro mundo anterior (Brasil no meu caso) e ninguém te dá à mínima. Aí você descobre que não é tão legal assim, só mais um na multidão.
Prometo que contarei a sensação daqui a alguns meses quando meu avião pousar em São Paulo. Por enquanto tenho tentado usar essa energia, esse momentum que sou capaz de criar, a favor do projeto. A favor das crianças.
As atividades na escola buscam criar vínculos entre as crianças e as shambas, expondo os objetivos, o planejamento, as razões para cada tomada de decisões. E mostrando que cada centímetro daquelas duas terras lhes pertence. Por isso são eles que escrevem a sinalização, que mapeiam as melancias, que pesquisam as árvores mais adequadas para crescer, que trabalham na terra.
Às vezes isso significa levarmos sozinhas 112 crianças de 1ª série pra desenhar melancias. Às vezes isso significa usar toda nossa paciência explicando uma atividade por uma hora para uma professora. Muitas vezes isso significa crianças ansiosas querendo participar do que estamos propondo, ou super tímidas com a liberdade que estão adquirindo durante uma discussão.
Momentum gerado. Agora é continuar trabalhando muito (das 5h30 às 0h00) para que ele gere uma vida melhor para 813 pares de olhinhos esperançosos.
As crianças comemoram cada vez que entramos na sala de aula. Os sorrisos se espalham e os olhinhos pequeninos brilham, comovente.
Imagino como elas se sentem tendo as duas mulheres mais cool de Magoma as "ensinando" (elas nos consideram professoras). Eu sei que nós não somos tão legais assim, mas para aquelas crianças somos Dada Ana e Dada Kristina, mulheres que vieram de muito longe (verdade) e escolheram gastar suas horas e energias trabalhando na escola (verdade também). E todo mzungu é especial (mentira).
Aliás, esse status mzungu deve ser muito similar ao Big Brother: de repente todo mundo te observa, de repente você é super interessante, de repente você volta pro mundo anterior (Brasil no meu caso) e ninguém te dá à mínima. Aí você descobre que não é tão legal assim, só mais um na multidão.
Prometo que contarei a sensação daqui a alguns meses quando meu avião pousar em São Paulo. Por enquanto tenho tentado usar essa energia, esse momentum que sou capaz de criar, a favor do projeto. A favor das crianças.
As atividades na escola buscam criar vínculos entre as crianças e as shambas, expondo os objetivos, o planejamento, as razões para cada tomada de decisões. E mostrando que cada centímetro daquelas duas terras lhes pertence. Por isso são eles que escrevem a sinalização, que mapeiam as melancias, que pesquisam as árvores mais adequadas para crescer, que trabalham na terra.
Às vezes isso significa levarmos sozinhas 112 crianças de 1ª série pra desenhar melancias. Às vezes isso significa usar toda nossa paciência explicando uma atividade por uma hora para uma professora. Muitas vezes isso significa crianças ansiosas querendo participar do que estamos propondo, ou super tímidas com a liberdade que estão adquirindo durante uma discussão.
Momentum gerado. Agora é continuar trabalhando muito (das 5h30 às 0h00) para que ele gere uma vida melhor para 813 pares de olhinhos esperançosos.
Educação na Tanzânia
A estrutura da Escola Primária Kwata é sem dúvida deficiente. Isso não me causa espanto ou surpresa e tenho certeza que vocês também não esperavam nada diferente. O problema tem sido encarar a falta de comprometimento dos professores, o sistema educacional desorganizado e os fimbos...
Como temos passado bastante tempo na escola, aplicando diferentes atividades para todas as séries, temos visto a dinâmica do dia-a-dia: estudantes esperando professores por longos períodos, professores comprando verduras do lado de fora da sala de aula, professores MUITO atrasados após cada intervalo, classes sem nenhum professor enquanto a sala de professores está lotada, estudantes correndo sobre as carteiras (literalmente) e pendurados nas janelas.
Em algumas classes encontramos dois professores sentados um de frente para o outro (o que significa de costas para os alunos). Nessa mesma classe os 150 alunos têm que andar sobre as carteiras para chegar a um lugar vazio de tão próximas que as carteiras estão, enquanto três salas são usadas para guardar entulho.
Cada atividade tem o desafio do barulho já que com tudo isso acontecendo sempre temos estudantes berrando nas janelas e espiando curiosos a atividade que estamos fazendo. Tenho total consciência que o barulho me traz muito mais incômodo que a qualquer criança, elas cresceram neste ambiente e convivem com altos volumes desde que nasceram: Magoma é incrivelmente barulhenta, pastores malucos começam a pregar com alto-falantes às 23h00, os vizinhos escutam música no último volume a partir das 6h00, os galos gritam e as crianças choram às 5h00 (podíamos ouvir o barulho do topo da montanha que escalamos), as mesquitas anunciam as horas de rezar em alto-falantes (seis vezes por dia).
Os fimbos constituem um capítulo a parte. São a versão tanzaniana da minha memória de infância sobre estórias com varas de marmelo e palmatórias. Quando cresci já não era permitido aos professores bater nos alunos, pelo menos em São Paulo.
Aqui é considerado natural e até encorajado bater nas crianças com fimbos. Em diversos momentos estamos na sala do diretor e somos abordados por um estudante:
Hodi (Com licença).
Naomba fimbo (Desejo um fimbo).
Hamna (Não há nenhum).
Nunca há fimbos, seja porque eles realmente não estão lá, seja porque nos recusamos a entregá-los.
Tenho consciência que os professores recebem salários baixos e não são bem preparados, mas meu idealismo me impede de usar isso como justificativa.
O fato é que temos passado horas e horas com os estudantes, em alguns momentos apenas Kristina e eu para 112 alunos de 1ª série. E nunca precisamos de um fimbo para manter a ordem ainda que nosso conceito de ordem esteja a quilômetros-luz de distância do conceito de ordem de qualquer pessoa por aqui.
Kristina pergunta: "Is there any learning happening here?"
Como temos passado bastante tempo na escola, aplicando diferentes atividades para todas as séries, temos visto a dinâmica do dia-a-dia: estudantes esperando professores por longos períodos, professores comprando verduras do lado de fora da sala de aula, professores MUITO atrasados após cada intervalo, classes sem nenhum professor enquanto a sala de professores está lotada, estudantes correndo sobre as carteiras (literalmente) e pendurados nas janelas.
Em algumas classes encontramos dois professores sentados um de frente para o outro (o que significa de costas para os alunos). Nessa mesma classe os 150 alunos têm que andar sobre as carteiras para chegar a um lugar vazio de tão próximas que as carteiras estão, enquanto três salas são usadas para guardar entulho.
Cada atividade tem o desafio do barulho já que com tudo isso acontecendo sempre temos estudantes berrando nas janelas e espiando curiosos a atividade que estamos fazendo. Tenho total consciência que o barulho me traz muito mais incômodo que a qualquer criança, elas cresceram neste ambiente e convivem com altos volumes desde que nasceram: Magoma é incrivelmente barulhenta, pastores malucos começam a pregar com alto-falantes às 23h00, os vizinhos escutam música no último volume a partir das 6h00, os galos gritam e as crianças choram às 5h00 (podíamos ouvir o barulho do topo da montanha que escalamos), as mesquitas anunciam as horas de rezar em alto-falantes (seis vezes por dia).
Os fimbos constituem um capítulo a parte. São a versão tanzaniana da minha memória de infância sobre estórias com varas de marmelo e palmatórias. Quando cresci já não era permitido aos professores bater nos alunos, pelo menos em São Paulo.
Aqui é considerado natural e até encorajado bater nas crianças com fimbos. Em diversos momentos estamos na sala do diretor e somos abordados por um estudante:
Hodi (Com licença).
Naomba fimbo (Desejo um fimbo).
Hamna (Não há nenhum).
Nunca há fimbos, seja porque eles realmente não estão lá, seja porque nos recusamos a entregá-los.
Tenho consciência que os professores recebem salários baixos e não são bem preparados, mas meu idealismo me impede de usar isso como justificativa.
O fato é que temos passado horas e horas com os estudantes, em alguns momentos apenas Kristina e eu para 112 alunos de 1ª série. E nunca precisamos de um fimbo para manter a ordem ainda que nosso conceito de ordem esteja a quilômetros-luz de distância do conceito de ordem de qualquer pessoa por aqui.
Kristina pergunta: "Is there any learning happening here?"
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
Estudantes superstars!
Os estudantes são superstars!
Clique aqui para ver as fotos da nossa semana de atividades educativas e super divertidas.
Semana passada, iniciamos nosso plano de atividades para os estudantes. Nosso objetivo é agressivo, uma atividade por semana para cada série envolvendo educação e agricultura e expondo os alunos a experiências que não fazem parte do currículo escolar regular.
Os alunos estão, cada vez mais, se considerando os “donos” das duas shambas que estamos montando, a de melancias e a de árvores. Estão aceitando a responsabilidade de cuidar das áreas e olhando com carinho para o empenho de todos nós em fazê-las produtivas.
É impressionante como vemos esguios alunos magricelos crescerem a cada atividade na shamba. Mesmo quando expostos a atividades com as quais não têm nenhuma intimidade se envolvem, participam e aprendem, com muito mais facilidade do que eu imaginei que aconteceria.
1ª e 2ª séries estão desenhando o crescimento das plantas. Cada aluno recebeu uma folha sulfite dobrada em quatro e a cada semana levamos os estudantes para desenho de observação. Começamos com um lápis de cor para cada estudante, mas planejamos montar grupos e tê-los usando diversas cores em seus desenhos ao longo das quatro semanas.
3ª série escreveu um TANGAZO (anúncio). Temos um senhor que é contratado para andar pelas ruas de Magoma no meio da noite anunciando alguma coisa, que varia de enterros a eleições. Sempre nos divertimos quando o ouvimos bater as panelas e gritar TANGAZO TANGAZO TANGAZO (às vezes às 4h00 da manhã! Quem está em estado consciente para assimilar a informação às 4h00 da manhã?!).
O anúncio da 3ª série diz: “Somos a 3ª série da Escola Primária Kwata. Nós dizemos: é proibido levar animais para a fazenda da escola primária. Muito obrigado” (o gado e as cabras comem as árvores que estão crescendo).
*não contem para ninguém, mas esta atividade realizará um dos nossos maiores desejos em Magoma: contratar o Homem-Tangazo.
4ª série entrevistou senhores e senhoras de Magoma sobre árvores. Crianças não andam em grupos supervisionados em Magoma, grupos de alunos entrevistando pessoas nem pensar. Por isso mesmo foi delicioso ver os grupos se espalhando por diversas áreas da vila e buscando wazee (senhores) e bibis (senhoras) para entrevistar. Cada grupo foi acompanhado por um adulto.
5ª série foi apresentada a seis problemas que devem ser considerados na escolha do melhor lugar para o berçário de árvores que estamos montando. Em grupos, discutiram os problemas e apresentaram sugestões de áreas. A melhor sugestão foi eleita em votação.
Esta atividade consumiu uma hora do nosso tempo não para envolver os alunos, para neutralizar a professora que estava em sala. Ela não conseguia entender que a discussão entre grupos com liberdade, ou que os alunos não nos entregariam nenhum papel no fim da aula. Sua interferência quase nos tirou do sério até que alguns exemplos cotidianos iluminaram nossa explicação.
A atividade acabou sendo muito produtiva e para ser justa com a professora, ela nunca abandonou o barco.
6ª série fez um mapa da shamba, marcando em um mapa que desenhamos previamente onde temos melancias crescendo e qual o tamanho da planta. Nós pensamos que seria difícil explicar esta atividade para as crianças, os mapas eram compridos, com marcações de A a AE. Mas os alunos fizeram um excelente trabalho e entenderam tudo rapidamente.
Esta sala nós simplesmente chegamos à escola e levamos conosco. Não havia professor em nenhum lugar e nosso tempo estava apertado.
O treinamento da semana foi em Manejo de Resíduos com aula prática de compostagem. Foi delicioso ver a 6ª série correndo para checar o andamento da compostagem no dia seguinte ao treinamento.
Os estudantes nos adoram e nós os adoramos também. A cada passo que damos na vila encontramos um estudante nos cumprimentando e muitos nos perguntam animados quando será a próxima atividade para sua série.
Caminhando hoje com Kristina comentamos que após uma semana de atividade todas as crianças de Magoma se consideram nossas amigas. E mais do que nos conhecer, acho que elas sentem que nos possuem.
Considerando que passamos cada hora de nossos dias trabalhando no projeto, caminhando da shamba para a escola, da escola para a shamba e depois para casa para escrever relatórios e preparar atividades para o dia seguinte, estou bem certa de que elas têm razão.
Clique aqui para ver as fotos da nossa semana de atividades educativas e super divertidas.
Semana passada, iniciamos nosso plano de atividades para os estudantes. Nosso objetivo é agressivo, uma atividade por semana para cada série envolvendo educação e agricultura e expondo os alunos a experiências que não fazem parte do currículo escolar regular.
Os alunos estão, cada vez mais, se considerando os “donos” das duas shambas que estamos montando, a de melancias e a de árvores. Estão aceitando a responsabilidade de cuidar das áreas e olhando com carinho para o empenho de todos nós em fazê-las produtivas.
É impressionante como vemos esguios alunos magricelos crescerem a cada atividade na shamba. Mesmo quando expostos a atividades com as quais não têm nenhuma intimidade se envolvem, participam e aprendem, com muito mais facilidade do que eu imaginei que aconteceria.
1ª e 2ª séries estão desenhando o crescimento das plantas. Cada aluno recebeu uma folha sulfite dobrada em quatro e a cada semana levamos os estudantes para desenho de observação. Começamos com um lápis de cor para cada estudante, mas planejamos montar grupos e tê-los usando diversas cores em seus desenhos ao longo das quatro semanas.
3ª série escreveu um TANGAZO (anúncio). Temos um senhor que é contratado para andar pelas ruas de Magoma no meio da noite anunciando alguma coisa, que varia de enterros a eleições. Sempre nos divertimos quando o ouvimos bater as panelas e gritar TANGAZO TANGAZO TANGAZO (às vezes às 4h00 da manhã! Quem está em estado consciente para assimilar a informação às 4h00 da manhã?!).
O anúncio da 3ª série diz: “Somos a 3ª série da Escola Primária Kwata. Nós dizemos: é proibido levar animais para a fazenda da escola primária. Muito obrigado” (o gado e as cabras comem as árvores que estão crescendo).
*não contem para ninguém, mas esta atividade realizará um dos nossos maiores desejos em Magoma: contratar o Homem-Tangazo.
4ª série entrevistou senhores e senhoras de Magoma sobre árvores. Crianças não andam em grupos supervisionados em Magoma, grupos de alunos entrevistando pessoas nem pensar. Por isso mesmo foi delicioso ver os grupos se espalhando por diversas áreas da vila e buscando wazee (senhores) e bibis (senhoras) para entrevistar. Cada grupo foi acompanhado por um adulto.
5ª série foi apresentada a seis problemas que devem ser considerados na escolha do melhor lugar para o berçário de árvores que estamos montando. Em grupos, discutiram os problemas e apresentaram sugestões de áreas. A melhor sugestão foi eleita em votação.
Esta atividade consumiu uma hora do nosso tempo não para envolver os alunos, para neutralizar a professora que estava em sala. Ela não conseguia entender que a discussão entre grupos com liberdade, ou que os alunos não nos entregariam nenhum papel no fim da aula. Sua interferência quase nos tirou do sério até que alguns exemplos cotidianos iluminaram nossa explicação.
A atividade acabou sendo muito produtiva e para ser justa com a professora, ela nunca abandonou o barco.
6ª série fez um mapa da shamba, marcando em um mapa que desenhamos previamente onde temos melancias crescendo e qual o tamanho da planta. Nós pensamos que seria difícil explicar esta atividade para as crianças, os mapas eram compridos, com marcações de A a AE. Mas os alunos fizeram um excelente trabalho e entenderam tudo rapidamente.
Esta sala nós simplesmente chegamos à escola e levamos conosco. Não havia professor em nenhum lugar e nosso tempo estava apertado.
O treinamento da semana foi em Manejo de Resíduos com aula prática de compostagem. Foi delicioso ver a 6ª série correndo para checar o andamento da compostagem no dia seguinte ao treinamento.
Os estudantes nos adoram e nós os adoramos também. A cada passo que damos na vila encontramos um estudante nos cumprimentando e muitos nos perguntam animados quando será a próxima atividade para sua série.
Caminhando hoje com Kristina comentamos que após uma semana de atividade todas as crianças de Magoma se consideram nossas amigas. E mais do que nos conhecer, acho que elas sentem que nos possuem.
Considerando que passamos cada hora de nossos dias trabalhando no projeto, caminhando da shamba para a escola, da escola para a shamba e depois para casa para escrever relatórios e preparar atividades para o dia seguinte, estou bem certa de que elas têm razão.
quinta-feira, 4 de novembro de 2010
Sintomas de Magoma
Às vezes as pessoas me chamam de Kristina ou chamam Kristina de Ana e hoje nós duas respondemos a ambos os nomes sem distinção. Ainda que seja carinhoso ter toda uma vila falando com você (depois de 3 meses ainda causamos furor) não há como não sentir uma mistura de alívio por ouvir nossos nomes substituirem o antigo "mzungu" e incômodo por atrair tanta atenção.
Ouvir Kristina nas ruas, depois que Kristina voltar pro Michigan, me fará me sentir menos sozinha. Ouvir Kristina nas ruas, depois que Kristina voltar pro Michigan, me fará me sentir menos eu.
O deslumbramento com as estrangeiras é sintoma do isolamento.
Temos um apelido para os ônibus de Magoma que não posso nomear aqui. Há tanta gente dentro do ônibus e a cada uma das 24 paradas de Magoma a Korogwe mais pessoas acham espaço para entrar. "Songea kirogo", versão tanzaniana pra "aperta mais um pouquinho" ou "all the way down" faz milagres.
As paradas são frustrantes porque grupos de pessoas esperam a 10 metros um do outro e o ônibus pára duas vezes, prolongando a viagem (38km percorridos em 2 horas).
Muitas vezes, pessoas que vão descer nas primeiras paradas estão no fundo do ônibus e têm que se espremer em espaços inexistentes para chegar à única porta.
Certo dia nos venderam bilhetes para os assentos 5 e 6. Detalhe: o ônibus só tinha 4 poltronas por fileira.
Os ônibus de Magoma são sintoma da falta de planejamento.
A comida nacional da Tanzânia é ugali. Ugali é uma pasta de farinha de milho com água cozida, normalmente, no chão, com a panela equilibrada sobre pedras e lenha como combustível. Ugali não tem qualquer tempero, nem mesmo sal. O acompanhamento varia entre dagaa (peixes muito muito muito pequenos comidos inteiros como saíram da água, fritos e mantidos por dias sem refrigeração) ou mboga mboga (alguma verdura cozida).
Ugali é sintoma da falta de criatividade.
Estou lendo um livro chamado Eat, Pray & Love.
Aprendam com meu erro, quando viajarem para um país que não fala sua língua para trabalhar com pessoas que também não falam sua língua, levem livros escritos na sua língua. Eu, estupidamente, vim para a Tanzânia falar inglês com a equipe americana (confortável) e falar Kiswahili com os tanzanianos (ainda desconfortável, melhorando a cada dia) e trouxe dois livros em inglês para ler.
Lógico que após poucas semanas eu quis trocar livros com meus amigos americanos. Lógico que eles não tinham qualquer livro em português, que me fizesse sentir-me abraçada e totalmente compreendida.
De qualquer forma, foi assim que Eat, Pray & Love chegou às minhas mãos. E lendo o capítulo da Itália me deliciei com o pensamento de que cada cidade do mundo tem uma palavra que a descreve e que todas as pessoas que vivem nessa cidade têm dentro de si.
De acordo com o livro, a palavra de Roma é SEXO. E do Vaticano é PODER.
Ponderei para concluir que a palavra de São Paulo é DINHEIRO. E a palavra de Salvador é ENERGIA (amigos baianos me corrijam se eu estiver errada).
Pensei muito na palavra de Magoma e só me vieram à cabeça as palavras que não temos aqui. Acho que a palavra de Magoma é FALTA. Mas espero que trabalhando duro com a criançada possamos vê-la substituída por POTENCIAL, SONHOS ou MUDANÇA.
Pp. Quando estiverem viajando pela Tanzânia e alguém lhes oferecer um livro que tem “Eat” no título e passa pela Itália recusem! Foi doloroso sonhar com queijo, pizza, massa...
Ouvir Kristina nas ruas, depois que Kristina voltar pro Michigan, me fará me sentir menos sozinha. Ouvir Kristina nas ruas, depois que Kristina voltar pro Michigan, me fará me sentir menos eu.
O deslumbramento com as estrangeiras é sintoma do isolamento.
Temos um apelido para os ônibus de Magoma que não posso nomear aqui. Há tanta gente dentro do ônibus e a cada uma das 24 paradas de Magoma a Korogwe mais pessoas acham espaço para entrar. "Songea kirogo", versão tanzaniana pra "aperta mais um pouquinho" ou "all the way down" faz milagres.
As paradas são frustrantes porque grupos de pessoas esperam a 10 metros um do outro e o ônibus pára duas vezes, prolongando a viagem (38km percorridos em 2 horas).
Muitas vezes, pessoas que vão descer nas primeiras paradas estão no fundo do ônibus e têm que se espremer em espaços inexistentes para chegar à única porta.
Certo dia nos venderam bilhetes para os assentos 5 e 6. Detalhe: o ônibus só tinha 4 poltronas por fileira.
Os ônibus de Magoma são sintoma da falta de planejamento.
A comida nacional da Tanzânia é ugali. Ugali é uma pasta de farinha de milho com água cozida, normalmente, no chão, com a panela equilibrada sobre pedras e lenha como combustível. Ugali não tem qualquer tempero, nem mesmo sal. O acompanhamento varia entre dagaa (peixes muito muito muito pequenos comidos inteiros como saíram da água, fritos e mantidos por dias sem refrigeração) ou mboga mboga (alguma verdura cozida).
Ugali é sintoma da falta de criatividade.
Estou lendo um livro chamado Eat, Pray & Love.
Aprendam com meu erro, quando viajarem para um país que não fala sua língua para trabalhar com pessoas que também não falam sua língua, levem livros escritos na sua língua. Eu, estupidamente, vim para a Tanzânia falar inglês com a equipe americana (confortável) e falar Kiswahili com os tanzanianos (ainda desconfortável, melhorando a cada dia) e trouxe dois livros em inglês para ler.
Lógico que após poucas semanas eu quis trocar livros com meus amigos americanos. Lógico que eles não tinham qualquer livro em português, que me fizesse sentir-me abraçada e totalmente compreendida.
De qualquer forma, foi assim que Eat, Pray & Love chegou às minhas mãos. E lendo o capítulo da Itália me deliciei com o pensamento de que cada cidade do mundo tem uma palavra que a descreve e que todas as pessoas que vivem nessa cidade têm dentro de si.
De acordo com o livro, a palavra de Roma é SEXO. E do Vaticano é PODER.
Ponderei para concluir que a palavra de São Paulo é DINHEIRO. E a palavra de Salvador é ENERGIA (amigos baianos me corrijam se eu estiver errada).
Pensei muito na palavra de Magoma e só me vieram à cabeça as palavras que não temos aqui. Acho que a palavra de Magoma é FALTA. Mas espero que trabalhando duro com a criançada possamos vê-la substituída por POTENCIAL, SONHOS ou MUDANÇA.
Pp. Quando estiverem viajando pela Tanzânia e alguém lhes oferecer um livro que tem “Eat” no título e passa pela Itália recusem! Foi doloroso sonhar com queijo, pizza, massa...
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