domingo, 25 de março de 2012

Ter cachorros na Tanzânia


Por quase dois anos eu resisti bravamente à tentação de ter cachorros aqui na Tanzânia. Ciente da temporariedade da minha estadia e preocupada em criar uma relação de confiança que os prejudicaria, fiz de tudo para ignorar minha paixão pelos bichos e para não me apegar a nenhum peludo específico.

Quando mudei para minha casa em Korogwe , isso ficou muito mais difícil. Mama, uma vira-lata amarela forte, tinha acabado de ter filhotes no meu jardim. Todos os dias ela vinha com os filhotes e me cumprimentava; às vezes eles me viam na rua e pulavam em mim, os seis (Mama e cinco filhotes) me deixando coberta de lama (no meio da estação chuvosa). As pessoas foram pegando alguns dos filhotes e restaram três (inicialmente eram nove), sempre passando pelo meu quintal. Um dia, algo aconteceu a um deles, que veio morrer na minha porta para minha tristeza. As duas fêmeas restantes estavam sempre por perto, mas eu, consciente de que não deveria ter PETs, limitava minha interação a um cafuné sempre que as via.

Tudo mudou no dia em que a menorzinha delas foi atropelada na rua. De casa eu ouvi os gritos e corri para resgatá-la de uma vala, de onde ela tremia e chorava. Pequena e magra, eu a trouxe para dentro, limpei e cuidei dos ferimentos. O atropelamento foi de raspão, nada sério (ainda bem já que não há veterinários em Korogwe). As duas cachorras, ainda sem nome, continuaram rodeando a casa, tendo as portas abertas para descansar na sombra, mas vivendo na rua.
Um dia, voltando de visita a um dos projetos, encontrei a pequena (a mesma do atropelamento) muito doente. Ela era só pele e osso e mal tinha forças para caminhar. Todos acharam que ela morreria, mas eu não podia deixar isso acontecer sem pelo menos tentar ajudar. Eu comprava comida e ela não comia quase nada, muito fraquinha. Mas com o tempo foi ganhando vida e com isso ganhou um nome, Maisha (vida em Swahili).

Desde então Maisha e Usiku (sua irmã) são minhas cachorras, como dizem as coleiras que fiz com cinto de criança, tampa de curry (onde gravei seus nomes com uma faca) e kanga (tecido para revestir o couro). Eu as alimento quase todos os dias e quando elas querem, quase sempre, elas passam a noite dentro de casa. Procuro mantê-las um pouquinho independentes já que eu viajo bastante e quando não estou aqui elas têm que se virar sozinhas. Nesses dias elas rodeiam minha vizinha, que sabe seus nomes a aprecia a segurança que elas trazem para a casa, mas não as alimenta ou toca nelas (e não as maltratar já é uma grande coisa em um país de muitos muçulmanos, para os quais os cachorros são animais sujos, e onde ninguém desenvolveu uma relação de afeto com os bichos).

Usiku (Noite em Swahili, por suas costas negras) é independente, não gosta de multidões ou de ser pega no colo e algumas noites prefere dormir na rua. É esperta e excelente caçadora, sempre conseguindo um pedaço de carne ou osso, que muitas vezes ela tenta esconder na minha casa – e me obriga e “caçar” a carne pelo cheiro insuportável que isso provoca.

Maisha é doce e boba. Ultrapassou Usiku em tamanho, está sempre com fome e suas patas dizem que será ainda maior. Suas orelhas estão sempre tortas, uma apontando para cima e a outra caída de lado. Além do atropelamento e da doença, foi vítima de óleo quente e tem algumas falhas no pelo como consequência.

Todos os dias, pelo menos seis cachorros passam pela minha casa: Maisha, Usiku, Mama, Mama Mdogo (Tia em Swahili, fêmea adulta), Baba (Pai em Swahili, um cachorro incrivelmente bonito que parece um labrador e que se não tomo cuidado marca território na minha sala) e Pepo (Paraíso em Swahili – este foi nomeado por Aly, uma das PCs, que queria levá-lo para Dar es Salaam, mas não conseguiu convencer o namorado – filhote e macho, também incrivelmente bonito e como todo menino adolescente, morto de fome). E o número vai aumentar já que Mama está enorme e pode parir a qualquer momento.

Ter os cachorros por perto aumenta a minha felicidade e a quantidade de trabalho diário. Tenho que me policiar para não transformar a casa em um canil e tenho tentando alimentar apenas Maisha e Usiku (Mama enquanto grávida) e apenas as duas têm permissão de passar a noite aqui. Consegui vacinar todos os filhotes contra raiva e quando eu voltar pro Brasil ou seguir para meu próximo destino terei duas cachorras viajando comigo. Maisha e Usiku ganharam meu coração e eu ganhei um compromisso com elas pelo resto de suas vidas.

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