quarta-feira, 28 de março de 2012

Kijungumoto - Kmoto para os íntimos


Kijungumoto é uma das vilas em que trabalhamos no Vale. Fica a 1km de Mashewa, vila grande e diversificada, mas tem uma população originária de poucas famílias, que se casaram entre si, e pobre. A vila é dividida em cinco sub-vilas das quais três são intensamente populadas e organizadas ao longo da estrada principal, de terra. Esta estrada sai de Korogwe e passa por Magoma, chegando até Tanga, cidade que dá nome ao distrito, no litoral, mas não é muito utilizada por sua má conservação. Kijungumoto tem cerca de 2000 habitantes.

Kate, Kelly e Lizzie são as três coordenadoras de projeto que vivem em Kijungumoto (ou Kmoto, como apelidaram sua área) e iniciaram um programa de educação para agricultores através de uma fazenda-escola de milho.

A fazenda-escola (shamba-darasa em Swahili) tem cerca de um acre e foi dividida em oito plotes nos quais diferentes técnicas de cultivo estão sendo testadas lado a lado, abrangendo o uso de sementes locais e sementes híbridas, adubo animal e intercrop com kunde (plantando na mesma área milho e kunde, um tipo de feijão, o solo é fertilizado pelo nitrogênio lançado no solo pelo kunde), adubo diluído (uma técnica de permacultura para aumentar a volume de adubo produzido através de sua diluição em água), uso de químicos ou cultivo orgânico e diferentes intensidades de poda de ervas daninhas.
O programa desenvolvido conta com um grupo de 16 agricultores que trabalha com as coordenadoras de projeto na shamba-darasa todas as terças-feiras por 3 horas, aprendendo as diferentes técnicas e comparando seus resultados. Cada agricultor cultiva, paralelamente, um acre em sua própria shamba empregando as técnicas aprendidas que se adaptem melhor à sua terra e à sua realidade. E para este acre tem acesso a ferramentas (enxadas, sprays, baldes) e químicos (contra fungos, insetos e para conservação do milho depois da colheita).
A última etapa desta primeira temporada do projeto oferecerá treinamento aos agricultores para que com conhecimento de mercado eles estoquem parte de sua produção e a vendam apenas quando os preços estiverem altos (na entressafra, quando não há milho disponível).

Ontem eu passei a noite em Kijungumoto e trabalhei na shamba por 3 horas com o grupo. Com um sorriso de orelha a orelha revirei o solo com a enxada e arranquei as ervas daninhas de 2/8 da shamba-darasa. O milho está crescendo na maioria do terreno, mas o atraso das chuvas (que deveriam ter começado há duas semanas) coloca uma interrogação no sucesso da colheita. Os agricultores rezam e nós torcemos para que neste mundo de incertezas em que vivemos caia água do céu para refrescar nosso suor e matar a sede do milho.

Para saber mais sobre o Projeto Kijungumoto acesse (em inglês):
http://www.2seeds.org/kijungumoto/
http://thekijungumotoproject.wordpress.com/

domingo, 25 de março de 2012

Ter cachorros na Tanzânia


Por quase dois anos eu resisti bravamente à tentação de ter cachorros aqui na Tanzânia. Ciente da temporariedade da minha estadia e preocupada em criar uma relação de confiança que os prejudicaria, fiz de tudo para ignorar minha paixão pelos bichos e para não me apegar a nenhum peludo específico.

Quando mudei para minha casa em Korogwe , isso ficou muito mais difícil. Mama, uma vira-lata amarela forte, tinha acabado de ter filhotes no meu jardim. Todos os dias ela vinha com os filhotes e me cumprimentava; às vezes eles me viam na rua e pulavam em mim, os seis (Mama e cinco filhotes) me deixando coberta de lama (no meio da estação chuvosa). As pessoas foram pegando alguns dos filhotes e restaram três (inicialmente eram nove), sempre passando pelo meu quintal. Um dia, algo aconteceu a um deles, que veio morrer na minha porta para minha tristeza. As duas fêmeas restantes estavam sempre por perto, mas eu, consciente de que não deveria ter PETs, limitava minha interação a um cafuné sempre que as via.

Tudo mudou no dia em que a menorzinha delas foi atropelada na rua. De casa eu ouvi os gritos e corri para resgatá-la de uma vala, de onde ela tremia e chorava. Pequena e magra, eu a trouxe para dentro, limpei e cuidei dos ferimentos. O atropelamento foi de raspão, nada sério (ainda bem já que não há veterinários em Korogwe). As duas cachorras, ainda sem nome, continuaram rodeando a casa, tendo as portas abertas para descansar na sombra, mas vivendo na rua.
Um dia, voltando de visita a um dos projetos, encontrei a pequena (a mesma do atropelamento) muito doente. Ela era só pele e osso e mal tinha forças para caminhar. Todos acharam que ela morreria, mas eu não podia deixar isso acontecer sem pelo menos tentar ajudar. Eu comprava comida e ela não comia quase nada, muito fraquinha. Mas com o tempo foi ganhando vida e com isso ganhou um nome, Maisha (vida em Swahili).

Desde então Maisha e Usiku (sua irmã) são minhas cachorras, como dizem as coleiras que fiz com cinto de criança, tampa de curry (onde gravei seus nomes com uma faca) e kanga (tecido para revestir o couro). Eu as alimento quase todos os dias e quando elas querem, quase sempre, elas passam a noite dentro de casa. Procuro mantê-las um pouquinho independentes já que eu viajo bastante e quando não estou aqui elas têm que se virar sozinhas. Nesses dias elas rodeiam minha vizinha, que sabe seus nomes a aprecia a segurança que elas trazem para a casa, mas não as alimenta ou toca nelas (e não as maltratar já é uma grande coisa em um país de muitos muçulmanos, para os quais os cachorros são animais sujos, e onde ninguém desenvolveu uma relação de afeto com os bichos).

Usiku (Noite em Swahili, por suas costas negras) é independente, não gosta de multidões ou de ser pega no colo e algumas noites prefere dormir na rua. É esperta e excelente caçadora, sempre conseguindo um pedaço de carne ou osso, que muitas vezes ela tenta esconder na minha casa – e me obriga e “caçar” a carne pelo cheiro insuportável que isso provoca.

Maisha é doce e boba. Ultrapassou Usiku em tamanho, está sempre com fome e suas patas dizem que será ainda maior. Suas orelhas estão sempre tortas, uma apontando para cima e a outra caída de lado. Além do atropelamento e da doença, foi vítima de óleo quente e tem algumas falhas no pelo como consequência.

Todos os dias, pelo menos seis cachorros passam pela minha casa: Maisha, Usiku, Mama, Mama Mdogo (Tia em Swahili, fêmea adulta), Baba (Pai em Swahili, um cachorro incrivelmente bonito que parece um labrador e que se não tomo cuidado marca território na minha sala) e Pepo (Paraíso em Swahili – este foi nomeado por Aly, uma das PCs, que queria levá-lo para Dar es Salaam, mas não conseguiu convencer o namorado – filhote e macho, também incrivelmente bonito e como todo menino adolescente, morto de fome). E o número vai aumentar já que Mama está enorme e pode parir a qualquer momento.

Ter os cachorros por perto aumenta a minha felicidade e a quantidade de trabalho diário. Tenho que me policiar para não transformar a casa em um canil e tenho tentando alimentar apenas Maisha e Usiku (Mama enquanto grávida) e apenas as duas têm permissão de passar a noite aqui. Consegui vacinar todos os filhotes contra raiva e quando eu voltar pro Brasil ou seguir para meu próximo destino terei duas cachorras viajando comigo. Maisha e Usiku ganharam meu coração e eu ganhei um compromisso com elas pelo resto de suas vidas.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Momento de transição


Esta semana se encerrou o prazo para recrutamento de coordenadores de projeto para a temporada de 2012/2013. A seleção segue até o fim de abril e em maio saberemos quantos novos rostos receberei aqui em agosto (sempre torcendo para que tenhamos brasileiros que me permitam umas palavrinhas em português).

O encerramento da seleção para coordenadores de projeto significa que a temporada do grupo que está aqui está chegando ao final. O grupo, que hoje tem 20 pessoas, está trabalhando nos documentos necessários para a transição, para que os novos coordenadores tenham as informações necessárias para fazer um bom trabalho. Para a próxima temporada nossa prioridade será fortalecer os projetos existentes e garantir que a transição seja um processo orgânico e contínuo.

Uma coisa que aprendi depois de trabalhar e viver aqui por tanto tempo é que iniciar um projeto na Tanzânia é um grande desafio, mas não o maior deles. O maior desafio é tornar este projeto mais robusto ano após ano e multiplicar os resultados e as oportunidades geradas para as comunidades. Manter o foco, o momentum e o engajamento das comunidades depende de muito trabalho e da seleção dos parceiros corretos. E de uma transição eficaz, que não crie zonas de incerteza.

Por nossas vilas eu fico aqui para mais uma temporada. Por Magoma, que tem meu coração, e também por Bombo, Kijungu, Lutindi, Bungu, Tabora e Kwakiliga. Este trabalho é um aprendizado diário, há sempre o que melhorar, e vamos buscando soluções mais eficazes a cada dia.  Acho que ainda não esgotei minha capacidade ou meu desejo de construir a máquina de desencalhar baleias. A caminho da excelência.

terça-feira, 20 de março de 2012

Tempo tempo tempo tempo


Quando me dei conta de que já fazem três meses que escrevi neste blog não acreditei. Não sei o que acontece com o tempo aqui, que corre sem sentido e para em esquinas inesperadas, fica parece que pra sempre, escondido, mas quando a gente pisca desaparece da nossa frente como que fugido. Isso é uma coisa que todos devem saber sobre a Tanzânia: o tempo aqui corre diferente. E falo isso no sentido figurado, mas também no sentido real.

Aqui o tempo é contado em turnos de doze horas que se iniciam com o nascer e com o pôr-do-sol. Assim, 1h00 são 7h00, a primeira hora com luz do sol, 6h00 são meio-dia e 12h00 são 18h00. Imagina isso associado a dizer as horas em Swahili... Confuso né? Para minha sorte esta contagem faz com que o horário na Tanzânia bata com o horário brasileiro quando o Brasil não está em horário de verão e mantém meu coração sempre perto de casa.

No sentido figurado, o tempo é um grande desafio. Tantos são os dias em que tudo anda devagar e as pessoas não dão atenção ao tempo. Na Tanzânia, tempo não é dinheiro, não há dinheiro, o que vale são relacionamentos e não eficiência. E relacionamentos incluem cumprimentar todos os vizinhos não apenas com um oi, mas com uma conversa de meia hora. Relacionamentos incluem funerais de dois dias aos quais vão toda a vila e vêm amigos de longe. Relacionamentos incluem não medir o tempo, mas viver pelas pessoas e se perder no tempo, perder o tempo, de forma que o mais longo dos dias pode não oferecer tempo para o que precisa ser feito. Se não tomarmos cuidado os prazos se estendem por meses além do previsto e em meio à angústia da espera nos perdemos na sensação de que todo o tempo do mundo não é suficiente. Quando nos damos conta, a data de finalizar o trabalho está batendo à porta sem que todos os dias tenham se passado por inteiro.

“De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo tempo tempo tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo tempo tempo tempo...”

Caetano Veloso


Publico este post às 6:26 daqui, como aí. Estou em casa =)