terça-feira, 22 de julho de 2014

Um muito de trabalho, um pouco de estrada

Hoje escrevo um post mais pessoal. A máquina carrega meu trabalho e meus sonhos e quase sempre escrevo sobre o trabalho e os sonhos relacionados a ele, mas neste momento estou viajando pelo sul da África e vivendo o continente de um jeito diferente.

Desde que cheguei à Tanzânia, passei a maior parte do meu tempo trabalhando, de domingo a domingo, sempre com férias muito curtas para ir ao Brasil e lembrar aos meus amigos e famílias que estou viva. Isso não mudou, ainda trabalho muito, de domingo a domingo, e estive no Brasil em maio para lembrar aos amigos e a família que estou viva. Mas o bacana é que no final deste ano (anos da 2Seeds começam em agosto e terminam em julho) tirei duas semanas para viajar com Monique, a amiga brasileira que voluntariou no Projeto Masoko por um ano e que agora segue em volta ao mundo para finalizar seu sabático.

Neste momento escrevo de Kasane, Botswana, fronteira quádrupla entre Botswana, Namíbia, Zâmbia e Zimbabwe. Já passamos por Maputo (Moçambique), Victoria Falls (Zimbabwe) e Livingstone (Zâmbia). Amanhã seguimos para a Namíbia dirigindo um carro 4x4 :).
Este roteiro se soma a viagens ao Kenya (leste da África, norte da Tanzânia), Malawi (sul da África, sul da Tanzânia), Egito (norte da África) e Rwanda (leste da África, oeste da Tanzânia) que, juntamente com a própria Tanzânia, são os países pelos quais viajei por aqui.

Estou feliz. Neste momento escrevo do pátio do hotel com o rio Chobe à minha frente. Há cinco minutos olhei para o lado e vi dois pumbas, se coçando nas pedras que beiram a cerca do hotel; assim, sem nem ligar para minha presença e eu (quase) sem ligar para a presença deles (confesso que tirei uma foto).

Para dividir um pouco de tudo que estou vivendo, seguem alguns highlights desta viagem. Muitos outros virão!

De Moçambique à Botswana:
  • Com uma bolha no pé de tanto caminhar em Maputo, fui à farmácia comprar um band-aid, só pra descobrir que no português de Moçambique não existe band-aid, o nome é pense-rápido. Ônibus se chama chapa e seis não é meia-dúzia (ninguém entende quando dizemos “meia” para o número seis);
  • Ao final da última noite em Maputo achamos uma casa de dança de salão chamada Face2Face. Zouk, Kizomba, Pasata e mais uma porção de ritmos que me fizeram trançar as pernas e dar muita risada. Em algum momento tocou Zeca, Deixa a Vida me Levar. Acho que estou deixando;
  • A passagem pela ponte das Cataratas Victoria (maiores cataratas do mundo, Mosi-oa-Tunya significando “A fumaça que trovoa” em Tokaleya Tonga,  língua local) me levaram os óculos escuros e a sanidade da máquina fotográfica, que desde que tomou um jato sólido de água tem vontade própria e fotografa e filma à minha revelia. Mas minha foto sorrindo debaixo d’água mostra minha alma vivendo as cachoeiras como criança que toma sorvete. O voo de helicóptero por cima das cataratas com famílias de elefantes espalhadas pelas ilhas do rio Zambezi completou a experiência inesquecível;
  • Cruzar a fronteira do Zimbabwe me deu a refeição mais local que consegui encontrar até agora: sadza (o mesmo que ugali, uma pasta de milho branco com água sem nenhum tempero) com uma mistura de vegetais em molho de amendoim. Eu comi como se deve, com as mãos. E ao olhar para o lado vi todos os garçons sorrindo e curtindo o que provavelmente foi uma das únicas turistas que eles viram capaz de manejar os dedos com a mesma habilidade do garfo e faca;
  • Depois de cruzar a fronteira de saída da Zâmbia e caminhando para cruzar o posto de entrada em Botswana, Monique e eu fomos surpreendidas por uma família de elefantes cruzando a rua à nossa frente. Foi uma sensação maluca ver dois elefantes adultos e dois filhotes, a cerca de 50 metros da gente, nos olhando com a mesma curiosidade que olhávamos pra eles;
  • Hoje, indo para um passeio ao nascer do sol na reserva de Chobe, uma hiena cruzou a estrada logo à nossa frente na saída da cidade. Na volta foi a vez de três elefantes adultos que ainda passaram um tempo admirando a paisagem enquanto bloqueavam a passagem de todos os carros. Aqui as pessoas e os animais efetivamente dividem o espaço (vide os pumbas circulando o hotel);
  • Ontem, depois do jantar, sentamos no pontão à beira do rio. Ao lado, um cartaz dizia: “Você está sob sua responsabilidade. Cuidado com hipopótamos e crocodilos”. Existe maneira melhor de fechar a noite?


Agora, enquanto finalizava este post, recebemos o carro 4x4 que alugamos para seguir viagem. Toyota Hilux novinho, com apenas 6.000km rodados, que será nosso companheiro até Windhoek, na Namíbia.


Amanhã o sol nos trará novas estradas.  Minha alma mal pode esperar!

domingo, 11 de maio de 2014

Por trás de toda tempestade se esconde um céu azul

Hoje é domingo, Sunday Funday como dizemos aqui (instituímos este dia para que tenhamos uma folga durante a semana, senão acabamos trabalhando sem parar).  Então eu não deveria estar trabalhando, mas é época de transição e preciso preparar o novo grupo de coordenadores de projeto para continuar o trabalho de seus antecessores enquanto preparo os antecessores para voltar pra casa e os parceiros para seguir adiante.

As coisas às vezes se complicam por aqui, para ser honesta mais com a sede da 2Seeds nos EUA do que com o trabalho na Tanzânia. Então às vezes me sinto no olho da tempestade e me canso de tentar explicar os mesmos conceitos tantas e tantas vezes. Estou no meio de um desses momentos.


Todo ano, dois coordenadores de projeto que se destacaram como líderes e profissionais, são escolhidos para ficar aqui um segundo ano, trabalhando comigo na administração do network como um todo e dando suporte aos coordenadores de projeto e aos parceiros. Este ano, os escolhidos foram Hailes e Cam, e estou começando a apresentá-los para as comunidades com que eles trabalharão. Sendo assim, hoje levei Cam a Tabora, projeto que estará sob sua responsabilidade a partir de agosto.


Confesso que estava com preguiça de passar a manhã em Tabora, ando cansada, mas o tempo é curto e preciso fazer o meu melhor sempre. Assim fomos tomar café-da-manhã com as oito mulheres e duas coordenadoras que formam o Projeto Tabora. Em Tabora, oito mulheres de personalidade forte e alma empreendedora produzem comida embalada (como batatas-fritas, amendoim com canela e pipoca) e vendem em Korogwe e Dar es Salaam. Além de geração de renda, um dos focos do projeto é nutrição, já que todas as mulheres são mães buscando comidas melhores para seus (muitos) filhos. O trabalho acontece em uma cozinha de bambu, que construímos com as mulheres e com a ajuda de parceiros de Kwak. E nossa reunião foi ali.

Mama Tabia com sua netinha Rehema (que está com malária), Mama Kitojo com seu barrigão de 8 meses de gravidez, Mama Eggie com seu jeito conciliador, Mama Salome com uma aparência muito mais saudável (ela costumava ser magra demais), Mama Asha com sua risada alta, Mama Mudi que anda mais presente e Mama Mwaliko com a pequena Hali ya Hewa (nascida há um mês) no colo – todas nos esperando com chai e chapati (chá e panquecas). A oitava mulher, Mama Hasani, havia ido à feira em outra vila comprar suprimentos.

Hali ya Hewa, pequenina e toda embalada em casacos e cobertores já que aqui há sempre o medo de as crianças ficarem doentes, me foi imediatamente entregue. A neném suava com suas sobrancelhas desenhadas à lápis para evitar mau-olhado (costume da Tanzânia).

Primeiro comemos, sempre um momento importante em uma comunidade que ainda vive a fome, ao som das risadas e brincadeiras  daquele grupo de mulheres que hoje encontrou sua identidade e tem um ar tão contagiante de triunfo que se manifesta com a repetição constante de “Wanawake wanaweza” (algo como “mulheres são capazes” ou “mulheres podem”). Foi então que as mulheres começaram a se apresentar, dizendo seus nomes, se autodenominando mulheres de negócios ou empreendedoras, e explicando seu papel dentro do grupo. A cada palavra meus olhos brilhavam, especialmente nos momentos em que ouvia “eu cuido da contabilidade e calculo lucro, custos e renda”,“eu cuido da nossa linha de produtos calculando o ROI e analisando prós e contras”, “eu cuido do relacionamento com os compradores”, ou ainda “eu marco quem está trabalhando e quem não está e procuro quem está faltando”.

A cada rodada de palavras, as mulheres falavam de sua história como grupo, dos momentos em que estavam tendo prejuízo e faziam as coisas sem pensar e sem saber o que estavam fazendo. De como quando começamos os treinamentos em negócios e empreendedorismo elas pensaram que estavam velhas demais pra aprender, que não dariam conta, e que seria mais uma série de treinamentos que não mudaria suas vidas (risos para Mama Tabia dizendo “kitchua kimeexpire”, algo como “a cabeça já passou do prazo de validade”). E foram seguindo, comentando os conceitos que aprenderam, falando de como vão seguir em frente até chegar a Maisha Bora (vida de qualidade).

Eu ouvia as vozes entusiasmadas, lembrava dos momentos de desencanto e fome que as vi passar e olhava para Hali ya Hewa nos meus braços pensando “esta menina vai viver em Maisha Bora”.


É difícil explicar o orgulho que senti hoje, vendo nossas parceiras de Tabora no controle de suas vidas e as coordenadoras de projeto de Tabora sentindo que fizeram a diferença e que cresceram. Comprovou que a estrutura que temos desenvolve capital humano e cria oportunidade para as pessoas serem o seu melhor.

São muitas as coisas que não tenho por ter decidido, há quatro anos, ficar aqui – algumas delas talvez eu nunca venha a ter, e são coisas importantes. Hoje, em Tabora, eu senti que vale a pena e o céu ficou azul. :)