Ontem recebi um texto muito bonito de uma amiga, Chris Mazzotta, sobre uma psicóloga chamada Debora Noal que trabalha para os Médicos sem Fronteiras em regiões de conflito, catástrofes naturais e guerra civil. E foi muito interessante, porque fiquei pensando se o que faço aqui na Tanzânia é suficiente, se eu também não deveria me enredar pelo mundo das grandes desgraças humanas. Mas conforme fui lendo o texto fui fazendo paralelos com minha vida aqui na Tanzânia, teoricamente um país de paz se considerarmos que a guerra só nos aparece vestida de armas e sangue.
Logo após ler o texto, tive que levar uma de nossas voluntárias ao hospital. Ela estava passando muito mal e nossa esperança de que fosse malária (e portanto passível de tratamento relativamente fácil) não se confirmou. Ficamos internadas o dia inteiro, ela sem cor e sem forças para levantar em uma enfermaria com cerca de 30 pacientes. As enfermeiras se revezavam com suas mãos duras para pendurar soro e muitas vezes fazer procedimentos que envolvem sangue sem luvas nas mãos em uma país de alta incidência de HIV. As luvas estavam disponíveis, a gente compra todo o material descartável e remédios, subsidiados pelo governo e pela grana de assistência internacional que vem para este mundo. Na mesma enfermaria havia uma senhora morrendo, que não sei se teve a chance de conhecer 2012, mulheres com malária severa, uma senhora que não respira sem o tanque de oxigênio, uma moça recém saída de cirurgia, uma maluca que gritava e se arrastava no chão e, Lindsay, a voluntária de quem eu estava cuidando.
Fui pensando nisso, pensando no que me trouxe à Tanzânia e no trabalho que faço. Muitas coisas me fazem falta aqui, nenhuma delas é dinheiro. A maioria das pessoas não entende o que eu vim fazer aqui ou porque me importo com esse mundo que elas acham que não me pertence, já que pessoas como nós têm o privilégio de escolher o mundo em que vivem. Eu aceitei esta escolha e me cerquei de pessoas que morrem de doenças tratáveis, que andam quilômetros com baldes na cabeça para conseguir água, cujas crianças têm umbigo saltado porque não têm assistência ao nascer, em que a fome dói no estômago todos os anos, quando os funerais de multiplicam ao mesmo passo que o milho escassa.
O texto e o hospital me fizeram lembrar de tudo isso. Me fizeram lembrar que ainda que eu não me exponha aos perigos que a Debora se expõe, eu estou criando oportunidades para que não haja guerra civil aqui e para que as pessoas tenham alternativas pacíficas para atacar a violência que as assola. Sim, porque para mim a fome é uma violência, pessoas morrendo de doenças tão tratáveis quanto uma pneumonia leve é uma violência, um hospital em que se espera 7,5 horas em meio a gritos pelo resultado de um exame que demora 10 minutos para ser executado e chega incompleto por falta de reagentes químicos é uma violência.
Eu vim trabalhar na Tanzânia para criar oportunidades para pessoas. Para que essas pessoas que me agradecem por eu estar aqui tenham realmente motivos para me agradecer. Para gerar alternativas, possibilitar escolhas, viver onde ninguém mais quer viver para que no futuro alguém queira viver aqui.
Sim, eu sinto falta dos meus amigos, da minha família, das cachorras, de dançar levemente e de ver o sol nascer na praia. Sinto falta de deitar no colo das minhas amigas e ganhar cafuné, da liberdade de viver sem amarras, de amar sem amarras, de me preocupar apenas com as minhas escolhas. Como eu disse, sinto falta de muitas coisas, mas nenhuma delas é dinheiro.
É inegável que sonhar com escolhas para os outros cria tensão, que ser a fonte de inspiração para comunidades inteiras exige uma força inesgotável, que carregar a imagem de todo um mundo longe (ou percebido como longe) daqui é exaustivo, que gerar ideias diárias para que sistemas tão simples quanto partilha de comida funcionem e vê-las falhar dia após dia exige perseverança infinita e compreensão para que a culpa não seja superficialmente (e erroneamente) atribuída. Sou mais forte hoje do que jamais sonhei ser. Não vim aqui buscar força, mas como muitas coisas que não se procura, fui encontrada por ela.
Desejo que em 2012 o mundo seja mais bacana, que cada um de nós encontre sua própria e singular forma de gerar energia boa e de irradiar cores. Desejo que as pessoas aqui na Tanzânia agarrem algumas das oportunidades que estamos gerando e que façamos um bom trabalho para que estas oportunidades sejam duradouras. Desejo que as pessoas aí no Brasil, ou em Portugal, tenham os amigos, o colo, o cafuné, o sorvete de pistache, o nascer do sol na praia e todas as coisas deliciosas que esse mundo nos proporciona. Que um dia isso seja uma possibilidade para todo mundo! Que tenhamos escolhas! E que estejamos aqui para ver esse lindo amanhecer juntos! Feliz 2012!
Pp. A Lindsay está melhorando. Ainda não sabemos exatamente qual é o problema, mas ela já tem cor e agora esboça um sorriso. E a matéria, muito bonita, sobre Debora Noal, você encontra neste link: