sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Um 2012 de escolhas para todos nós!


Ontem recebi um texto muito bonito de uma amiga, Chris Mazzotta, sobre uma psicóloga chamada Debora Noal que trabalha para os Médicos sem Fronteiras em regiões de conflito, catástrofes naturais e guerra civil. E foi muito interessante, porque fiquei pensando se o que faço aqui na Tanzânia é suficiente, se eu também não deveria me enredar pelo mundo das grandes desgraças humanas. Mas conforme fui lendo o texto fui fazendo paralelos com minha vida aqui na Tanzânia, teoricamente um país de paz se considerarmos que a guerra só nos aparece vestida de armas e sangue.

Logo após ler o texto, tive que levar uma de nossas voluntárias ao hospital. Ela estava passando muito mal e nossa esperança de que fosse malária (e portanto passível de tratamento relativamente fácil) não se confirmou. Ficamos internadas o dia inteiro, ela sem cor e sem forças para levantar em uma enfermaria com cerca de 30 pacientes. As enfermeiras se revezavam com suas mãos duras para pendurar soro e muitas vezes fazer procedimentos que envolvem sangue sem luvas nas mãos em uma país de alta incidência de HIV. As luvas estavam disponíveis, a gente compra todo o material descartável e remédios, subsidiados pelo governo e pela grana de assistência internacional que vem para este mundo. Na mesma enfermaria havia uma senhora morrendo, que não sei se teve a chance de conhecer 2012, mulheres com malária severa, uma senhora que não respira sem o tanque de oxigênio, uma moça recém saída de cirurgia, uma maluca que gritava e se arrastava no chão e, Lindsay, a voluntária de quem eu estava cuidando.

Fui pensando nisso, pensando no que me trouxe à Tanzânia e no trabalho que faço. Muitas coisas me fazem falta aqui, nenhuma delas é dinheiro. A maioria das pessoas não entende o que eu vim fazer aqui ou porque me importo com esse mundo que elas acham que não me pertence, já que pessoas como nós têm o privilégio de escolher o mundo em que vivem. Eu aceitei esta escolha e me cerquei de pessoas que morrem de doenças tratáveis, que andam quilômetros com baldes na cabeça para conseguir água, cujas crianças têm umbigo saltado porque não têm assistência ao nascer, em que a fome dói no estômago todos os anos, quando os funerais de multiplicam ao mesmo passo que o milho escassa.

O texto e o hospital me fizeram lembrar de tudo isso. Me fizeram lembrar que ainda que eu não me exponha aos perigos que a Debora se expõe, eu estou criando oportunidades para que não haja guerra civil aqui e para que as pessoas tenham alternativas pacíficas para atacar a violência que as assola. Sim, porque para mim a fome é uma violência, pessoas morrendo de doenças tão tratáveis quanto uma pneumonia leve é uma violência, um hospital em que se espera 7,5 horas em meio a gritos pelo resultado de um exame que demora 10 minutos para ser executado e chega incompleto por falta de reagentes químicos é uma violência.

Eu vim trabalhar na Tanzânia para criar oportunidades para pessoas. Para que essas pessoas que me agradecem por eu estar aqui tenham realmente motivos para me agradecer. Para gerar alternativas, possibilitar escolhas, viver onde ninguém mais quer viver para que no futuro alguém queira viver aqui.

Sim, eu sinto falta dos meus amigos, da minha família, das cachorras, de dançar levemente e de ver o sol nascer na praia. Sinto falta de deitar no colo das minhas amigas e ganhar cafuné, da liberdade de viver sem amarras, de amar sem amarras, de me preocupar apenas com as minhas escolhas. Como eu disse, sinto falta de muitas coisas, mas nenhuma delas é dinheiro.
É inegável que sonhar com escolhas para os outros cria tensão, que ser a fonte de inspiração para comunidades inteiras exige uma força inesgotável, que carregar a imagem de todo um mundo longe (ou percebido como longe) daqui é exaustivo, que gerar ideias diárias para que sistemas tão simples quanto partilha de comida funcionem e vê-las falhar dia após dia exige perseverança infinita e compreensão para que a culpa não seja superficialmente (e erroneamente) atribuída. Sou mais forte hoje do que jamais sonhei ser. Não vim aqui buscar força, mas como muitas coisas que não se procura, fui encontrada por ela.

Desejo que em 2012 o mundo seja mais bacana, que cada um de nós encontre sua própria e singular forma de gerar energia boa e de irradiar cores. Desejo que as pessoas aqui na Tanzânia agarrem algumas das oportunidades que estamos gerando e que façamos um bom trabalho para que estas oportunidades sejam duradouras. Desejo que as pessoas aí no Brasil, ou em Portugal, tenham os amigos, o colo, o cafuné, o sorvete de pistache, o nascer do sol na praia e todas as coisas deliciosas que esse mundo nos proporciona. Que um dia isso seja uma possibilidade para todo mundo! Que tenhamos escolhas! E que estejamos aqui para ver esse lindo amanhecer juntos! Feliz 2012!

Pp. A Lindsay está melhorando. Ainda não sabemos exatamente qual é o problema, mas ela já tem cor e agora esboça um sorriso. E a matéria, muito bonita, sobre Debora Noal, você encontra neste link:

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Cabeça, alma e a Paz Mundial

Desde julho, tenho dividido minha vida e trabalho com o Sam, Diretor de Desenvolvimento de Projetos que trabalha comigo. Somos os dois únicos funcionários da 2Seeds e planejamos basicamente todos os passos da organização, de quem vai levar o PC com malária ao hospital ao plano de expansão para outros países. Frequentemente a coisa fica tão complexa que nos perguntamos: que tal discutirmos um assunto mais ameno, como a Paz Mundial, para relaxar? Dividimos o trabalho, a casa e a nossa dedicação incondicional a tornar o (quase) impossível possível.

Sam tem 23 anos e se formou em Estudos Africanos em Harvard. É inteligente, muito carismático e, digamos assim, um moleque.
Eu, que sempre me achei jovem (e sou!), me tornei a mãe de todas as famílias (significado de Mamuugu, meu nome em Kisambaa), de todos os Coordenadores de Projeto e... do Sam.
Nossas diferenças formam uma equipe forte, com base acadêmica (Sam) e experiência prática e cultural (eu). As diferenças são claras na maneira que descrevemos o mundo ou falamos Swahili (que eu aprendi em Magoma e Sam aprendeu em Harvard). Sam é a cabeça e eu sou a alma.

Momento de mudança, cabeça e alma se separam fisicamente muito em breve. A temporada do Sam aqui na Tanzânia está acabando e no sábado ele volta pros Estados Unidos (que ele insiste em chamar de América e eu aceito chamar de tudo, menos América).


Sam e eu batalhamos muito, quase sempre juntos, para equilibrar alma e cabeça. Foi impressionante ver como ele descobriu sua alma nos últimos 6 meses, se jogou, se questionou, passou por momentos difíceis, teve que se conhecer melhor e vocalizar seus medos. Tivemos momentos em que ele, emocionalmente abalado, teve que sair da sala para se recompor enquanto eu, calmamente, lhe oferecia meus argumentos.

Sam e eu discutimos todo o tempo (quem mais no mundo discutiria as diferenças entre moral e consciência às 23h00, depois de trabalhar 16 horas?), nos desafiamos e nos respeitamos. Se eu não lhe tiver ensinado mais nada, pelo menos sei que o ensinei a não usar a toalha de rosto pra limpar o chão (e tenho certeza que Maelis, sua namorada, me agradecerá eternamente por isso).


O trabalho aqui não é fácil e os objetivos são ambiciosos.
Batalhamos para que pessoas que aprendem a contar, número por número, de 1 a 1.000.000 (isso mesmo, as crianças continuam a aprender adição na sétima série para chegar a 1.000.000) consigam projetar lucros e tomem decisões fundamentadas.
Batalhamos para que um agricultor que não sabe quantos dias tem uma semana negocie a venda de sua colheita e poupe dinheiro para reinvestimentos.
Batalhamos para que as pessoas batalhem por seu próprio destino e para que mais estrelas cadentes sejam vistas no céu da Tanzânia e mais pedidos sejam feitos sobre a terra vermelha (Sam jamais descreveria nosso trabalho assim).
Precisamos de cabeça(s) e de alma(s). Precisamos acreditar na Paz Mundial.


Sam, I wish you could read some Portuguese so you could read how proud I am of everything we've done together. Cheers to your soul! Cheers to my mind! On the way to the World Peace! Tuko pamoja ;)