sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Graduação em Magoma

Estou exausta e ainda tenho que fazer minha mala para a viagem ao
Brasil. Hoje foi meu último dia em Korogwe antes da viagem, amanhã
pela manhã vou pra Dar es Salaam para viajar no domingo. Hoje foi
também um dia muito especial e por mais cansada que eu esteja não
poderia deixar de dividi-lo com vocês.

Ontem choveu a noite inteira e hoje choveu boa parte do dia. Não
sabemos se o período curto de chuvas que deveria chegar em meio de
outubro veio mais cedo ou se toda esta chuva é um alarme falso e as
nuvens desaparecerão daqui a pouco. As pessoas estão correndo para as
shambas (sítios) para plantar já que muita gente (muita mesmo) não tem
comida em função das chuvas loucas que tivemos no começo do ano (a
chuva atrasou muito e quando veio foi demais e inconsistente).

Mas o que tornou o dia de hoje tão especial foi a graduação da 7ª
série em Magoma.

Eu havia me programado para ir à festa, que deveria começar às 10
horas, mas toda a chuva me deixou hesitante já que rios de lama
transbordam pela estrada em tempos de chuva. O resultado é que já eram
quase 10 horas quando me perguntei "você é uma mulher ou é um rato?",
montei Bwana Mtoto (carro da 2Seeds recém adquirido e recém
ressuscitado da oficina – nosso carro é velhinho, mas nós o amamos. O
nome significa Senhor Criança) e decidi encarar a estrada, confiante
na minha habilidade off-road. 45 minutos depois cheguei a Magoma, a
casa para qual eu tinha que ir antes de ir pra casa, e tive um dia de
felicidade em meio ao (delicioso) caos de Magoma.

A cerimônia que deveria começar às 10 horas estava atrasada (o que eu
esperava?) e eu tinha uma reunião com os coordenadores de projeto
greenfield aqui em Korogwe às 14h00. Às 13h00 vi uma sala de aula
simples e lindamente decorada (aproximadamente 3 horas de esforços dos
professores) e às 13h15 vi toda a decoração ser desmontada já que
aparentemente a sala era pequena demais para todos os presentes (ah
Tanzania...).

Enquanto isso os estudantes ensaiavam seus cantos vestidos em suas
melhores roupas. As meninas vestiam as saias laranjas (a maioria
emprestada) que são uniforme da escola secundária – algumas tinham
cabelos trançados ou pelo menos recém raspados. Os meninos vestiam
gravata com camisa social, muitos com sapatos lustrosos.

De todas as crianças que começam a escola, cerca de 50% se formam.
Deles, cerca de 30% devem ir para escola secundária e eu ficarei
surpresa se mais de 10% se formarem na escola secundária– queria muito
poder dizer que nosso projeto, 9 meses de idade, já é capaz de mudar
esses números, mas ainda temos muito trabalho pela frente pra colher
resultados diferentes.

A 7ª série da Kwata (escola primária de Magoma) teve força e garra pra
trabalhar com um sorriso no rosto, me ensinar Swahili e garantir
refeições na escola para 813 estudantes. Eles me inspiraram a cada
dia, me enlouqueceram incontáveis vezes, se encharcaram comigo
irrigando a shamba e calcularam lucro na aula de matemática. Crianças
como Henry Godfrey, as duas Marias, Aisha, Miriam e Issa me deram
motivos pra nunca desistir – eles nunca desistiram.

Bwana Mtoto saiu revigorado da viagem – se provou um carro pronto pra
encarar kijijini (vila). Eu saí emocionada da viagem desejando um
mundo de oportunidades para os estudantes que se despedem e um mundo
de esperança e garra para os que ficam. O projeto Magoma viu sua
primeira formatura (que venham muitas!) . As novas voluntárias tiveram
a chance de se apaixonar pelo projeto e de receber energia para
fazê-lo melhor.

Não são poucas as vezes que me pergunto "o que eu vim fazer aqui?". Em
dias como hoje a resposta é tão fácil que nem precisa de palavras pra
ficar clara.


Pp. Para fazer o dia ainda melhor eu também:

a) Visitei Crazy Bibi, a última avó que me restou (ainda que quase sem
dentes na boca), que amo com todo meu coração e apesar de velhinha
havia ido visitar sua filha (e consultar um médico – varizes e
glaucoma) em Morogoro (cidade a 6 horas de Magoma). O abraço que
ganhei de Crazy Bibi faz a vida valer a pena.
b) Conversei com Babu, meu avô com o qual falo todos os dias, mas de
quem sinto saudades todos os dias também.
c) Cheguei atrasada, mas participei da reunião com os projetos
greenfield aqui em Korogwe e pude trocar experiências com o barulhento
e alegre grupo de PCs.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Subindo e descendo montanhas

Faz muito tempo que não escrevo porque o trabalho tem ocupado cada
minuto de todos os meus dias. Não moro mais em Magoma e assumi minha
posição de Diretora de Desenvolvimento e Projetos em agosto. Agora são
9 projetos, 23 voluntários e 2 diretores aqui na Tanzânia. Estou
vivendo em Korogwe.

Escreverei mais de agora em diante e darei detalhes sobre cada
projeto, mas hoje quero me dedicar mais ao que tenho sentido do que ao
trabalho em si.

Ontem fui a Lutindi, vila que fica lindamente cravada no alto de uma
montanha. Desde a primeira viagem, ano passado com o time de Lutindi,
descer aquela montanha me faz pensar e me coloca a sentir as saudades,
a encarar as dúvidas, a lembrar os sonhos. Ano passado, o fim da tarde
escondeu as lágrimas que expunham as saudades de tudo que havia
deixado no Brasil, o medo e o frio na barriga, o susto por estar
realmente aqui.

Eu vim pra muito longe, mais longe que longe, fazer algo tão simples
como salvar o mundo – salvar um mundo. Parece coisa de filme quando
falamos assim...
Na parede do meu quarto em Korogwe pendurei minhas havaianas
sobreviventes de Magoma. A terra e o barro repuxaram a borracha, a
sola esburacou, o azul ficou meio branco e meio marrom. As havaianas
de Magoma me lembram quem eu sou, me lembram o que eu vivi e me
lembram por que estou aqui. As havaianas de Magoma são como eu na
Tanzânia: meio fora de forma, muitas cicatrizes do caminho adornando a
bandeirinha do Brasil e um cansaço que não se esconde, mas que não as
impede de estarem prontas pra mais um dia na shamba, pra mais uma
conversa em KiSwahili (ou KiSambaa), pra mais um pedra no caminho.
Prontas pra mais.

Na Tanzânia quando falta, falta, faz falta. Eu não sei muito sobre
muita coisa, mas aqui tenho que saber quem eu sou. E este eu é forte,
pra se encarar sozinho, pra entender as variações de sozinho, pra
viver sem. Tento inspirar as 23 pessoas que seguem meu caminho e às
vezes acho que consigo, às vezes falho. Na vida que escolhi, falhar é
cotidiano, é passo. Mas o vento que a moto joga no meu rosto também
lembra que no meio das falhas surgem os acertos e que no meio das
falhas eu não falhei quando vim pra cá. 813 crianças comem todos os
dias os frutos de 9 meses de falhas. Minhas falhas estão enchendo
barrigas há 7 meses. Que venham mais pedras.